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Leonardo Sakamoto

Brasil não pode esquecer que "heróis" torturadores foram pessoas covardes

Leonardo Sakamoto

08/09/2018 20h21

Na vala clandestina de Perus, em São Paulo, foram descobertas mais de mil ossadas que vêm passando por perícia para identificação de desaparecidos pela ditadura. Foto: L.C Leite/Folhapress

O general Antonio Hamilton Mourão, vice de Jair Bolsonaro, em sabatina na GloboNews, nesta sexta (8), disse que "heróis matam" ao falar do finado torturador Brilhante Ustra, responsável pela repressão política violenta na ditadura. Considerando, contudo, que Ustra espancava e matava quem não podia reagir por já estar preso e sob tutela do poder público, diria que seu exemplo de herói foi um sujeitinho bem covarde.

Postei isso nas redes sociais após assistir à sabatina e recebi centenas de respostas que, ao invés de discutir a declaração do general, bradavam algo como "mas regimes de esquerda também mataram".

Esse tipo de comentário remete à minha infância, quando acusávamos o coleguinha de algo e ele, prontamente, respondia "mas fulano de tal também". A justificativa, comum entre alunos da pré-escola, tem o mesmo DNA daqueles casos nos quais dados sobre pessoas executadas por ordem do alto comando da ditadura brasileira (1964-1985) são apresentados e, ao invés de receberem um questionamento sobre a fonte da informação e sua veracidade, são recebidos simplesmente com um "mas fulano de tal também matou".

Já fiz esta reflexão antes, mas acho que vale a pena retomá-la.

Esse raciocínio opera da seguinte forma: se a ditadura brasileira assassinou, mas ditaduras comunistas e socialistas também assassinaram, então ninguém pode falar nada a respeito sob risco de hipocrisia. Isso embute farsas argumentativas. Primeiro, quem se diz de esquerda não compactua necessariamente com o que governos que se dizem de esquerda fazem ou dizem (por exemplo, para mim Stálin, Pol Pot, Mao entre tantos outros, arderiam no mármore do inferno – se ele existisse). Esquerda e direita são campos extremamente plurais e a esquerda tem dificuldade até para chegar em um consenso no lado correto de quebrar um ovo.

Ao mesmo tempo, isso passa pelo pressuposto equivocado de que um ato ao se equiparar ao outro mostra que todo são iguais para tentar inviabilizar a crítica. Essa justificativa tenta calar os que criticam a celebração do regime autoritário, aqui no Brasil, que perseguiu, torturou, matou, esquartejou, queimou, jogou ao mar. Celebração feita por pessoas que, hoje, desejam um Estado que propague a violência para garantir a paz.

Na verdade, há espaço para criticar todas as ditaduras violentas.

Essa falta de maturidade é típica de um país que ainda engatinha quanto à pluralidade do debate público e vive em meio à herança não-resolvida do seu próprio período autoritário. O que me lembra o velho paradoxo das pessoas que querem usar sua liberdade de expressão para exigir que determinadas minorias não tenham liberdade de expressão, como era na época da ditadura..

Governos que se autointitulavam socialistas ou comunistas mataram milhões. Do Khmer Vermelho, no Camboja, aos expurgos, na União Soviética, passando pelos fuzilamentos na China ou em Cuba, a História é farta em registrar o que esses grupos fizeram em nome de suas revoluções ou da perpetuação de poder. Parte da esquerda faz essa crítica e não deseja copiar nenhum desses regimes.

Da mesma forma, a História é rica ao demonstrar as montanhas de mortos em decorrência da ação colonialista de países europeus na América Latina, África e Ásia. Sem falar dos milhões que morreram em decorrência das políticas de expansão do capitalismo norte-americano ao redor do mundo ou das grandes corporações.

Como falta memória para muita gente, se a cada postagem sobre a ditadura brasileira você não fizer uma retomada histórica de 200 anos das mortes ocorridas após o nascimento de Karl Marx, torna-se um mentiroso seletivo e hipócrita. Se a cada postagem, não reafirmar que considera o governo Maduro, na Venezuela, autoritário e violento, seu pensamento não vale. Pois, no fundo, as pessoas não querem que você diga nada além do lado da história com a qual concordam.

Isso deságua mais do que na terceirização do pensamento e da reflexão. Leva à indigência intelectual que, ao atingir o fundo do poço, faz com que o ódio flua livremente pelo corpo sem os incômodos entraves impostos pela razão. Você se torna uma casca vazia e, o melhor, sem se sentir culpado por disso.

Em 25 de outubro de 1975, o jornalista Vladimir Herzog foi torturado e morto após ter se apresentado para prestar um depoimento. A ditadura, contudo, afirmou que ele havia cometido suicídio. A versão, justificada por um laudo médico forjado e uma foto grosseiramente montada, não convenceu. Com isso, o assassinato de Vlado, que trabalhava na TV Cultura, serviu para mostrar à população o destino de quem discordava do regime. E se tornou um marco na luta contra as arbitrariedades do governo militar.

Em março de 2013, os familiares do jornalista Vladimir Herzog receberam novo atestado de óbito, trazendo como causa da morte "lesões e maus-tratos sofridos durante o interrogatório nas dependências do segundo Exército DOI-Codi" por determinação da Justiça paulista. No documento anterior, forjado pelo médico da ditadura, aparecia "enforcamento por asfixia mecânica".

O Destacamento de Operações de Informações – Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-Codi) era integrado por membros do Exército, Marinha, Aeronáutica e policiais. O açougue passou pelas mãos de Brilhante Ustra.

A Corte Interamericana de Direitos Humanos considerou o Estado brasileiro responsável pela falta de investigação e de punição dos responsáveis ​​pela tortura e assassinato de Herzog, de acordo com comunicado divulgado na página da instituição em julho. A Corte – órgão jurisdicional da Organização dos Estados Americanos (OEA), responsável por fiscalizar se os países cumprem as obrigações previstas nos tratados continentais nessa área – também culpou o Brasil pela violação do direito dos parentes de Herzog de conhecer a verdade e questionou a aplicação da Lei da Anistia, de 1979, que seria usada para encobrir e proteger os responsáveis pela morte. A Corte lembrou que, por ser crime de lesa humanidade, ele é imprescritível e não passível de anistia.

O problema é que, muito provavelmente, se você leu até aqui este post, já exerce um debate plural de ideias, independente de concordar comigo ou não. Afinal, seja à esquerda ou à direita, muitos não ficam satisfeitos com uma informação reduzida a uma tuíte porque não estão recolhendo munições para sua guerra digital. Querem ouvir versões e entender a complexidade do mundo à sua volta.

O que só confirma que estamos nos aproximando das eleições cavalgando em burrice violenta. Entendo por burrice não a falta de um conhecimento específico. Burro não é quem separa sujeito e predicado por vírgula ou quem não sabe calcular. Burro é quem menospreza o conhecimento, chegando a odiar quem o detém ou quem busca aprendizado para ampliar sua visão de mundo. A burrice não aceita a existência de outra versão que interprete os fatos além da sua. É incapaz de reafirmar sua visão e, ao mesmo tempo, conviver com análises divergentes. Enxerga a opinião alheia como "notícia falsa" não por desconhecer a diferença entre formatos de textos narrativos e opinativos, mas por não admitir o conteúdo. A burrice de alguns seguidores de políticos que não aceitam a existência de divergências ocorre da direita à esquerda, ou seja, não é monopólio de ninguém.

Lidamos com o passado como se ele tivesse automaticamente feito as pazes com o presente. Não, não fez. E o impacto de não resolvermos o nosso passado em que o Palácio do Planalto autorizou a morte de brasileiros com os quais não concordava se faz sentir no dia a dia das periferias das grandes cidades e nos grotões da zona rural, com o poder público aterrorizando, reprimindo e torturando parte da população (normalmente mais pobre) com a anuência da outra parte (quase sempre mais rica). Sim, milhões de pobres sentem no couro diariamente a herança dessa ditadura.

"A ditadura não executava opositores" é uma variação da "Terra é plana". Em ambos os casos, há muito já se deixou o campo da razão. É crença. E a história mostra que as pessoas matam e morrem por suas crenças, sejam elas quais forem.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.