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Leonardo Sakamoto

Após atentado, fotos manipuladas viralizam como arma eleitoral

Leonardo Sakamoto

10/09/2018 18h51

Logo após o atentado contra Jair Bolsonaro, circularam nas redes sociais montagens em que a cabeça de seu agressor, Adelio Bispo Oliveira, aparecia inserida digitalmente em fotos junto a Lula. O objetivo era tentar vinculá-lo ao ex-presidente, apesar da investigação da Polícia Federal não apontar nenhum indício a respeito. As toscas manipulações, mostrando que os "artistas" não contavam com conhecimentos básicos de Photoshop, não impediram que elas fossem compartilhadas centenas de milhares de vezes.

Qualquer ser humano que sabe que fotos podem ser manipuladas que resolvesse exercer seu senso crítico sobre essas imagens por alguns segundos chegaria à conclusão de que elas são falsas. Ou, ao menos, ficaria com dúvida razoável que o levaria a dar um Google em busca de mais informações antes de passá-la adiante. Mas a primeira coisa a ser abatida em uma eleição ultrapolarizada como esta é o senso crítico.

Em outras postagens, montagens acusam políticos de esquerda de estarem abraçados com Adelio em fotos. Não importa que a pessoa na imagem, nem de longe, se pareça com o criminoso. O que importa é que a informação confirma a opinião de alguns, de que a esquerda está por trás de tudo, e por isso é aceito.

Da mesma forma, como já descrevi aqui antes, pipocaram postagens com imagens de Bolsonaro fazendo campanha em um hospital, afirmando que isso era a prova de que ele teria entrado andando após o ataque, estaria bem e tudo não passaria de uma farsa. Contudo, as imagens eram de antes do ataque.

Também circula a imagem de uma camiseta com sangue e um rasgo junto à acusação de que ela é a prova tanto da falsidade do atentado, uma vez que os vídeos mostram que a facada foi de outro lado, quanto prova da gravidade do atentado. O que essas postagens não dizem é que essa camiseta não é a original, mas uma recriação feita para uma peça de apoio ao candidato.

Em condições normais, tendemos a considerar verdadeiras as informações que atestam nossa visão de mundo e falsas aquelas que a negam, como forma de autoproteção e identificação de grupo. Em um ambiente como este, contudo, o viés de confirmação torna-se regra vigente.

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Uma postagem fraudenta é vista como verdade porque cabe feito uma luva dentro da narrativa defendida por uma pessoa ou um grupo. Outros vão além: pouco importa se aquela imagem é registro fiel de algo que ocorreu ou uma deturpação da realidade. O que importa é que aquele material pode ser usado como munição nas batalhas eleitorais.

Enquanto isso, a circulação de desmentidos com a informação correta é prejudicada por alguns fatores. Primeiro, as pessoas estão inseridas em câmaras de eco e só ouvem aquilo que elas mesmas falam. Por isso, dificilmente é levado em conta uma fonte de informação que traga uma correção se ela não for chancelada por um contato em que se confia. Se ela vier sem essa chancela, a chance de um desmentido de notícia falsa ser visto como notícia falsa é grande. Mas quantas pessoas com bom senso dentro um grupo inflamado têm coragem para dizer que os demais estão errados?

Segundo, a questão das bolhas nas redes sociais. Muitas vezes a informação com desmentido não consegue furar o bloqueio causado pela polarização política e pelo algoritmo das redes sociais – que tende a mostrar a cada um de nós conteúdo de perfis e páginas com os quais mais interagimos regularmente. O que impede o "novo" de entrar e formar conceitos divergentes. Ou mesmo corrigir uma informação. Grandes veículos de comunicação, quando trazem desmentidos públicos, tendem a furar essas bolhas. O problema é que, quando a informação vai contra a visão de mundo do consumidor da informação, ele pode achar que a reportagem está querendo lhe enganar.

Há também aqueles que percebem que é uma montagem, mas compartilham mesmo assim. Áreas do cérebro relacionadas ao prazer e à satisfação são estimuladas quando divulgamos informação inédita, ou seja, quando nossos interlocutores não sabiam de algo que nós estamos comunicando em primeira mão.  A relação de poder representado pelo ato, por menor que seja, não é desprezível. Isso somado a características das redes sociais, como o lugar quentinho e acolhedor de validação coletiva trazida por uma "chuva de likes", empurra pessoas a compartilharem mesmo sabendo que algo é falso.

Sem contar, é claro, que um delicioso boato vai mais longe do que uma chata correção. Pessoas evitam compartilhar correções de postagens por elas enviadas anteriormente com medo de perder a confiança de sua rede como fonte segura de informação.

Vale lembrar o que aconteceu com a notícia falsa de que a vereadora Marielle Franco seria casada com uma liderança do tráfico de drogas e teria sido eleita com a ajuda de uma facção criminosa – farsas que foram denunciadas por plataformas de checagem de notícias e veículos de comunicação na época de seu assassinato.

Destaque-se que sua execução e a de Anderson Gomes, seu motorista, completa seis meses na próxima sexta (14) sem que os responsáveis tenham sido apontados.

No caso de Marielle, a circulação de material fraudento foi usado para tentar reduzir o impacto nas ruas e nas redes dos protestos contra sua morte, que a apontavam como mártir da luta contra violência e pela garantia de direitos iguais a negros, pobres, mulheres e população LGBTT. Milícias digitais temiam que a reação catártica à sua execução poderia ajudar a mudar o balanço de forças na rede, que atuam na construção de significados coletivos.

Já no caso do atentado, tanto bolsonaristas quanto anti-bolsonaristas estão em uma batalha on-line para, respectivamente, garantir que o ataque ajude a eleger o candidato ou para que o ataque se dilua como ato pontual ou até tire votos dele. Se por um lado, ainda vemos pessoas negando veementemente a ocorrência da facada, do outro constatamos a tentativa de vincular politicamente o ato a partidos e políticos de esquerda – tarefa que vem sendo feita até por senadores e líderes religiosos fundamentalistas.

Se o debate público fosse mais qualificado, todos se sentiriam motivados a ler mais até para não serem humilhados coletivamente nas redes e aplicativos ao compartilharem conteúdo falso e argumentos ruins, preconceituosos e superficiais. O discurso do ódio – mais palatável e que mexe com nossos sentimentos mais primitivos e simples – ecoa e repercute. Esse discurso basta em si mesmo. Não precisa de nada mais do que si próprio para ser ouvido, entendido e absorvido.

No médio prazo, precisamos repensar o ensino para melhorar o debate público. Enquanto isso, daqui até as eleições, quem ajuda mediar o debate público (como a mídia) precisa ajudar a qualificá-lo o melhor possível, na forma e no conteúdo. E quem dele participa, a exemplo dos políticos, deve baixar o tom e desconstruir essa ultrapolarização.

Para certas pessoas, uma mensagem anônima no WhastApp é mais agradável que cinco minutos de reflexão solitária – pois nunca se sabe aonde a crítica pode nos levar. Dissolver-se no coletivo e deixar que as decisões sejam tomadas pela massa me parece desesperador. No limite, isso destrói pontes e desumaniza o outro.

Um atentado como esse seria a chance de conclamar as pessoas à razão. Porque ele é a negação de direito à liberdade de expressão e dos direitos políticos, que estão inseridos no rol dos direitos humanos.

Mas, pelo que se vê na rede, ele tem sido usado como combustível da desinformação para incendiar a polarização e manter, sob cabresto, os votos de fieis seguidores até o final de outubro.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.