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Leonardo Sakamoto

Tratamento de Hepatite C pode ser bomba a explodir no colo de novo governo

Leonardo Sakamoto

11/09/2018 21h22

Foto: Evaristo Sá / AFP

Por Eloísa Machado, especial para o blog*

Há uma bomba armada na área da Saúde que deve explodir no colo do próximo (ou da próxima) presidente da República. A ele ou ela caberá decidir se tratará brasileiros vivendo com Hepatite C ou preservará privilégios injustificados de grandes empresas farmacêuticas multinacionais. Até agora, a sustentabilidade do Sistema Único de Saúde (SUS) é discutida nas eleições, por alguns, apenas pela perversa Emenda do Teto dos Gastos (que limitou investimentos públicos) e o assunto não está no radar de nenhuma campanha.

Estima-se que 71 milhões de pessoas vivam com Hepatite C, em todo o mundo, e que 400 mil morram todos os anos em decorrência da doença. No Brasil, o Ministério da Saúde trabalha com o número de 657 mil pessoas vivendo com infecção crônica de Hepatite C, sendo que dois terços delas sequer têm conhecimento de sua condição. Não há dados confiáveis sobre o número de mortes, mas dá para imaginar o tamanho da desgraça.

E como desgraça pouca é bobagem, o problema pode piorar (e muito), não só para as pessoas vivendo com infecção crônica de Hepatite C, mas para todos os usuários do SUS, todos nós. O medicamento, que é capaz de curar 95% dos pacientes com a doença, pode ter a patente concedida pelo Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI) e, com isso, ser imposto um custo altíssimo para cada uma das 84 pílulas indicadas no tratamento padrão.

Deu no jornal Folha de S. Paulo, desta terça (10), em reportagem de Patrícia Campos Mello: "Em guerra bilionária, farmacêutica tenta barrar genérico contra Hepatite C".  A manchete não poderia ser mais precisa. É uma guerra, mas todos os mortos estão em apenas um lado: são as pessoas vivendo com o vírus HCV.

Antes que se pense ser uma patente justa, é bom prestar atenção no caso: o processo no INPI reúne documentos de várias organizações alertando para o fato de que o medicamento não apresenta novidade, nem atividade inventiva. Por isso, a patente foi negada em outros países. Mas, no Brasil, periga ser concedida.

Logo aqui, onde a Constituição diz que uma patente é um privilégio que só pode ser dado a algo que tiver inovação e se atender ao desenvolvimento tecnológico do país e ao interesse público. Um grande "se", condicionando o privilégio ao interesse público. Está lá, escrito no famoso artigo 5º da Constituição Federal, que trata de nossos direitos e deveres.

Mas por qual razão uma patente seria tão trágica? Ora, a resposta é simples; além de inconstitucional, é matemática.

O Ministério da Saúde gasta R$ 28.241,00 com o tratamento combinado. Se fosse através de um genérico, pagaria R$ 6.160,00. O resultado: uma economia de mais de R$ 1 bilhão por ano.  Ou seja, sem genéricos, os pacientes vivendo com infecção crônica de Hepatite C ficarão sem tratamento. Ou seja, 12 mil brasileiros que aguardam na fila de transplante ficarão à espera da morte quando poderiam resolver o problema com medicação.

A empresa Gilead, ao buscar essa patente indevida, coloca em risco a produção de genéricos e impede acesso aos medicamentos.

O Sistema Único de Saúde é visto, hoje, como um grande mercado pelas empresas: compra no atacado, paga antecipado. "Negócio do Brasil", porque a China também negou essa patente.

Organizações de defesa de direitos humanos, de direito à saúde e de pacientes reagiram. O Coletivo de Advocacia em Direitos Humanos – o CADHu, do qual faço parte – pediu formalmente a investigação da empresa e a adoção de todas as medidas para garantir o direito à saúde das pessoas vivendo com infecção crônica de Hepatite C.

Porém, os órgãos governamentais parecem mais preocupados em agrada-la do que preservar a saúde dos brasileiros.

Ninguém se apresenta como responsável pela guarda do interesse público no caso, nem o INPI, nem a Advocacia Geral da União. Parecem tranquilos em permitir que a empresa drene recursos públicos valiosos e cada vez mais raros (graça à inconstitucional, pornográfica e já citada Emenda do Teto dos Gastos).

É o toma cá, dá lá: tome cá os recursos públicos oriundos de um sistema tributário que aperta os mais pobres. E dê lá, para uma empresa transnacional.

Não há Estado a defender os cidadãos, a Saúde e a Constituição. Vale tudo.

(*) Eloísa Machado é professora da FGV Direito SP, especialista em direitos humanos, coordenadora do Centro de Pesquisa Supremo em Pauta e advogada do Coletivo de Advocacia em Direitos Humanos (CADHu).

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.