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Leonardo Sakamoto

Pela democracia, Bolsonaro deveria conter as milícias que agem em seu nome

Leonardo Sakamoto

26/09/2018 11h26

Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

Parte da militância bolsonarista age como milícia, não apenas nas redes sociais, mas também na vida offline. Atua para silenciar e punir aqueles que criam embaraços ao seu líder ou que questionam as ideias que ele defende. Já que o candidato está lançando um "Manifesto à Nação" para melhorar a imagem de antidemocrático, machista, racista, homofóbico e preconceituoso que carrega, deveria começar contendo essas milícias antes que seja tarde.

Pois essa é a parte assustadora do dia seguinte à abertura das urnas: saber que essas milícias, que operam na escuridão, vão se sentir fortalecidas para atuar à luz do dia, dependendo do resultado.

O ataque digital ao grupo Mulheres Unidas contra Bolsonaro e o espancamento de uma de suas organizadoras, no Rio de Janeiro, são dois exemplos desse ecossistema de violência política que circunda o candidato. Outros exemplos recentes são as cantoras, atrizes e jornalistas que estão sofrendo ameaças contra elas e suas famílias por aderirem à campanha #EleNão ou por simplesmente fazerem seu trabalho de reportar à sociedade.

Esse ecossistema também inclui, por conta da publicação de conteúdo considerado "nocivo" ou de "mentiras", ameaças contra ativistas de direitos humanos e jornalistas, ataques às famílias dessas pessoas via ligações telefônicas, mensagens nas redes sociais e em aplicativos, terror psicológico, perseguição e ataques verbais em espaços públicos, difamação através da difusão de notícias falsas e, no limite, agressões físicas.

Não é necessário que Bolsonaro demande uma ação por parte desse grupo. Suas postagens em textos e vídeos acusando terceiros alimentam naturalmente as milícias que agem como matilha para defendê-lo, tornando a vida dos outros um inferno. Vão além de xingar as pessoas, querem puni-las efetivamente. E, se possível, tornar o caso um exemplo do que pode acontecer com quem fizer o mesmo.

Em menor grau, mas ainda assim preocupante, foi isso o que ocorreu com João Doria, no brevíssimo espaço de tempo em que foi prefeito de São Paulo. Ele reclamava, em postagens de redes sociais, de jornalistas que revelavam problemas em sua administração. Ato contínuo, milícias digitais – algumas delas muito bem organizadas, usando páginas e sites anônimos – incitavam o ataque aos profissionais de imprensa e suas famílias.

O lulismo opera, não raro, como um processo messiânico, sebastianista, com a expectativa do líder que retornará para trazer de volta a grandeza do país. E para defendê-lo, sua militância pode ser intolerante, chegando às vias de fato em brigas de ruas e sendo bem ofensiva, como o que acontece contra atores da Lava Jato. Mas comparar a ação das hordas bolsonaristas à militância petista é má fé e descolamento da realidade. Estamos falando de algo bem mais complexo, que vai além de exércitos de perfis falsos pagos operando em nome de candidatos e fãs que fariam quase de tudo por seu herói. É promoção de violência política para moldar a opinião pública à sua imagem e semelhança.

Os Camisas Negras, do fascismo italiano, atacavam jornais, movimentos políticos, sindicatos, grevistas, intelectuais e quem ousasse ir contra os ideais que seus líderes defendiam. Pregavam, através do medo e da porrada, o nacionalismo e repudiavam o comunismo, o liberalismo e o pacifismo. Seria leviano comparar dois momentos históricos diferentes em poucas linhas. Até porque, a Itália da primeira metade do século 20 não contava com nossa tecnologia de comunicação, que garante que ações de justiciamento sejam promovidas de forma imediata e massiva, em sucessivas vezes, com baixo custo. Aponta-se para o "inimigo", revela-se seus "crimes", e os seguidores fazem o trabalho sujo.

Ao longo dos últimos quatro anos, fui cuspido, agredido fisicamente, atacado em restaurantes, supermercados e outros lugares públicos. Fui alvo de campanhas elaboradas de difamação digital que trouxeram ameaças de morte, tão graves que, mais de uma vez, mereceram a intervenção do Ministério Público Federal, investigação policial e preocupação de relatores das Nações Unidas e do governo federal.

Posso atestar, portanto, que esse tipo de ação – que nasce na rede e se derrama para fora – não pode ser encarada como algo banal. É grave e está diretamente relacionada à lenta corrosão de nossas instituições. Em um potencial governo Bolsonaro, quem causará os primeiros danos aos direitos fundamentais será o naco extremista de sua militância que, sentindo-se empoderada, fará seus julgamentos sem medo de ser feliz.

Preocupo-me menos com um "autogolpe" – palavra imortalizada na boca do candidato a vice na chapa de Bolsonaro, o general Hamilton Mourão – e mais com casas sendo pichadas com frases preconceituosas, profissionais sofrendo assédio pesado em seus locais de trabalho, pessoas apanhando na rua por serem quem são ou discordarem da maioria. Considerando que as milícias não contam com um comando geral de ação, mas são pulverizadas, isso pode acontecer em qualquer lugar do país. Qualquer um pode fazer parte disso – seus primos e tios, um colega de trabalho.

Jair Bolsonaro deveria deplorar, publicamente, as técnicas usadas por parte de seus seguidores em seu "Manifesto à Nação". Mas duvido que fará isso, mesmo após o odioso atentado que sofreu – perpetrado por um lunático que absorveu o clima político – e que foi alvo de repúdio de todos os seus adversários.

Pois a ação desses grupos são um espelho do pouco apreço à democracia e a suas instituições de seu candidato. Talvez ele até se manifeste. Num momento futuro, quando houver pouca coisa para se defender e qualquer ato nesse sentido soar como puro escárnio.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.