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Leonardo Sakamoto

Após Toffoli chamar golpe de "movimento de 1964", tortura vira "chamego"?

Leonardo Sakamoto

01/10/2018 17h31

Foto: Walterson Rosa/Trip Imagem/Estadão Conteúdo

Caro ministro João Torresmo,

Sei que seu nome não é João, muito menos Torresmo. Mas, hoje, prefiro tratá-lo dessa forma porque você se parece muito com um João Torresmo que conheci, há muitos anos, durante uma reportagem que fiz na Amazônia. Não se preocupe, ele era um bom sujeito. Sei que não vai se importar com isso, pois, ao que tudo indica, dar às coisas o seu devido nome também não é seu forte.

Ele era de Marabá e você, de Marília, o que é uma quase-coincidência. Tal qual é uma quase-coincidência você começar a relativizar o início dos Anos de Chumbo, mesmo já tendo defendido a revisão da Lei da Anistia, logo após acolher como assessor o general da reserva Fernando Azevedo e Silva. Nada contra a pessoa dele, muito menos contra as Forças Armadas de hoje. Mas é simbolicamente incômodo quando a Presidência do Supremo Tribunal Federal traz a caserna para perto de si, talvez apostando que isso ajudará a construir pontes e acalmar os ânimos. Como incômodo foi quando Michel Temer cercou-se de auxiliares militares em áreas historicamente civis.

Quando mais jovem, caro João, aprendi o que era bullying. Bem, naquela época, isso tinha outros nomes. Mas lembro bem que assediar alguém, chamando-o por uma alcunha diferente da sua, provocava imenso desconforto. Não no meu caso. Aprendi a não me importar em ser chamado de cabeçudo – pois, afinal de contas, era um fato incontestável e não uma fake news.

Mas não creio que um país que passou 21 anos sob o controle autoritário das Forças Armadas e de seus aliados civis; que teve milhares de mortos e desaparecidos políticos; que institucionalizou a tortura como política pública, o que é sentido nas favelas e no interior do país até hoje; que autorizava assassinatos de dissidentes políticos diretamente do Palácio do Planalto; que convivia diariamente com a censura nas artes, na cultura, no jornalismo; que consentiu com um modelo de desenvolvimento que escravizou camponeses, matou comunidades tradicionais e destruiu ecossistemas; que manteve os pobres calados e os trabalhadores sob vigilância, entre tantas outras tragédias, sinta-se à vontade ao ouvir o presidente de sua mais alta corte chamar a ruptura democrática por uma expressão pasteurizada e em cima do muro como "movimento de 1964".

Caro João, chamar o golpe civil-militar de 1964 de movimento de 1964, como fez, nesta segunda (1), em um evento em São Paulo, não é apenas uma minimização grosseira do que foi o Estado de Exceção e uma falsa equivalência entre as responsabilidades da ditadura e dos contrários a ela. Ao dizer que o erro das Forças Armadas foi não terem saído após o golpe e não o golpe em si, acaba fazendo um bullying pesado contra os familiares daqueles que perderam a vida lutando contra o regime.

O que deve pensar, por exemplo, os parentes do frei Tito, encontrado enforcado no dia 10 de agosto de 1974, durante seu exílio na França, como consequência da tortura que sofreu pelas mãos dos agentes da ditadura militar ao ouvi-lo falar isso?

"Sentaram-me na 'cadeira de dragão' [com chapas metálicas e fios], descarregaram choques nas mãos e na orelha esquerda. A cada descarga, eu estremecia todo, como se o organismo fosse decompor. Da sessão de choques, passaram-me ao pau de arara. Mais choques, pauladas no peito e nas pernas cada vez que elas se curvavam para aliviar a dor. Uma hora depois, com o corpo todo sangrando e todo ferido, desmaiei", diz seu testemunho à Justiça Militar, em 1969. Os espasmos do corpo de Tito causados pelos golpes que sofria certamente perfaziam um movimento, mas acho que não era isso que você quis dizer.

Se as pessoas soubessem o poder real de algumas palavras não aceitariam tão facilmente que elas fossem escancaradamente escondidas por aqueles que já sabem de sua força, meu caro João. Pois uma palavra quando expelida por uma multidão que é plenamente consciente de seu significado é capaz de mudar muita coisa. Quando, por exemplo, o Brasil bradou contra o regime estabelecido no golpe de 1964, pedindo eleições diretas na década de 1980.

Sabemos, é claro, que o que convencionamos chamar de "certo" ou "errado" ou mesmo "belo" ou "feio", "golpe", "revolução" ou "movimento" é decorrente de disputa de significados que depende do processo histórico de cada sociedade. Ou seja, não é Deus, envolto em legiões de querubins e arcanjos, que desce até a Terra e define tudo isso. São pessoas, grupos sociais que criam significados e os recriam ao longo do tempo.

Garantir que o "golpe de 1964" fosse assim chamado demandou sangue, suor e a vida de muita gente, João. Indo contra o poder econômico, o poder político e o poder midiático que, em determinado momento, apoiaram o regime. Mas foi um processo vitorioso. Prova disso é que a própria Globo, que deu anuência à tomada de poder pelos militares, fez seu mea culpa com um famoso editorial intitulado "Apoio editorial ao golpe de 64 foi um erro". Note que não está escrito nem revolução, nem movimento. Mas golpe.

Dar as palavras o poder que elas têm é especialmente importante por uma série de razões. Muitas empresas não dizem que "demitiram" 1.300 empregados". Falam que "descontinuaram os contratos" ou "interromperam o relacionamento" com os empregados – que também mudaram de nome: "colaboradores". Uma porrada no rosto da namorada é tratada por muitas famílias brasileiras como "desentendimento de casal". Uma tentativa de estupro ou de violência sexual é considerado por "forçar a barra" em algumas notícias. Chamar as coisas por outro nome contribui com a retirada silenciosa de direitos.

Da mesma forma muita gente acha que a pessoa que defende que brancos tenham mais direitos efetivados que negros e indígenas, que homens devem mandar e mulheres, obedecer, que ricos precisam ser mais protegidos do que pobres, que ciclistas são comunistas e devem ser combatidos e que casamento homoafetivo deveria ser proibido está "exercendo simplesmente seu direito à liberdade de expressão" e não deve ser responsabilizada caso seu discurso traga a violência à vida de alguém.

Por isso é tão importante que pessoas como você, João, que detém poder de fato, tenham consciência desse processo e participem ativamente dele. Não escolhendo lados, mas defendendo – de forma intransigente – os direitos fundamentais, que valem para todos. A começar por chamas as coisas pelo que elas são de fato: machismo, racismo, homofobia, xenofobia, preconceito. Golpe.

Expressões e interpretações de significados (e das leis) têm o poder que juízes, políticos, empresários conferem a elas. Mas esse processo tem a população como protagonista, exercendo o mesmo poder, apesar de achar que o tem, chamando as coisas pelo que elas realmente são, ajudando a construir uma sociedade realmente democrática. O problema é quando alguém no topo desconsidera as lutas de quem está na base, mostrando uma desconexão com a trajetória dos últimos 33 anos de democracia.

Por fim, João, a meu ver, "movimento de 1964" está mais para o frenesi causado por Roberto Carlos com "Parei na Contramão", que ficou entre as primeiras músicas nas paradas de sucesso naquele ano. Pena que isso também prenunciava um país inteiro que ficaria na contramão da História por duas longas décadas.

Saudações democráticas.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.