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Leonardo Sakamoto

O que Bolsonaro tem a dizer sobre a violência envolvendo seus militantes?

Leonardo Sakamoto

09/10/2018 16h44

Enterro do mestre de capoeira e compositor Romualdo Rosário da Costa, morto após uma discussão política

Jair Bolsonaro recebeu a solidariedade de todos os adversários quando sofreu o abominável atentado contra sua vida, no dia 6 de setembro, em Juiz de Fora (MG). Ao contrário de parte de eleitores de outros partidos, que se descolaram da realidade e negaram a facada, os candidatos até paralisaram sua ações de campanha por terem considerado grave o que aconteceu ao ex-capitão. Os políticos lembraram que diferenças se resolvem pelo diálogo, não calando ou matando o outro.

Por isso, pergunta-se por que Bolsonaro não tem repudiado de forma enérgica e consistente as perseguições, agressões e até assassinato cometidos por indivíduos de sua militância (indivíduos, não a massa de seus eleitores). Ele, mais do que ninguém, sentiu na pele o significado da loucura política e do ódio. E como é considerado exemplo e liderança para muita gente e prometeu, repetidas vezes, que iria pacificar o país, poderia começar pedindo a seus seguidores optarem pelo diálogo ao invés da violência, dizendo que esse comportamento será reprimido em seu governo. Pois o silêncio de hoje alimentará um monstro incapaz de ser controlado amanhã, levando à normalização da porrada como resposta à discordância política.

Não estou, com isso, dizendo que a extrema direita detém o monopólio da violência política – os registros de agressões por parte de membros e apoiadores do Partido dos Trabalhadores a jornalistas e outros militantes, pela mídia, ao longo dos anos, provam que não. Como foi o caso da agressão de um homem que bateu-boca com apoiadores do PT, em frente ao Instituto Lula, em abril deste ano, e teve que ser hospitalizado. Ou os jornalistas atacados durante o ato contra a prisão de Lula, em São Bernardo, no mesmo mês.

Mas, neste momento em que a sociedade está ultrapolarizada por conta da campanha eleitoral, têm sido mais frequentes os relatos de colegas jornalistas que foram ameaçados, perseguidos e agredidos, vítimas de assédio on-line e offline por parte de fãs do candidato. Desde o início do ano até 7 de outubro, a Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji) registrou 137 agressões e ameaças contra jornalistas por conta da cobertura do processo eleitoral – boa parte delas ligadas a defensores do ex-capitão.

Uma das vítimas dessa loucura foi o mestre de capoeira Romualdo Rosário da Costa, o Moa do Katendê, de 63 anos, que foi compositor do Ilê Aiyê, assassinado com 12 golpes de faca após ter defendido Fernando Haddad em uma discussão sobre as eleições presidenciais, por um defensor de Jair Bolsonaro, num bar na periferia de Salvador, na madrugada desta segunda (8). O criminoso voltou até sua casa, pegou um facão para matar a vítima. A polícia conseguiu prendê-lo, que confessou o crime. Doze golpes de facão.

No dia anterior, uma jornalista foi agredida e ameaçada de estupro, após votar, em Recife (PE). Ela estava identificada com um crachá e é ligada ao portal NE 10, que pertence ao Jornal do Commercio. Segundo a vítima, os agressores afirmaram que "quando o 'comandante' ganhasse, a imprensa toda ia morrer". Um deles usava uma camiseta preta com a foto do candidato e os dizeres 'Bolsonaro Presidente'. Ela mostrou à imprensa hematomas e cortes nas mãos e no rosto que sofreu. Quando um carro buzinou, os agressores fugiram. A jornalista foi encaminhada para exame no Instituto Médico Legal e a Polícia Civil está investigando a denúncia.

A Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo, o Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Estado de Pernambuco e a Federação Nacional dos Jornalistas emitiram notas públicas repudiando o ocorrido e exigindo pronta responsabilização dos envolvidos.

O grosso da população, incendiado no período eleitoral, deve voltar ao "normal" após a apuração dos votos no próximo dia 28 da mesma forma que houve uma descompressão após a votação do impeachment. O que não significa que parte da sociedade não se manterá em guerra, seja pela sensação de impunidade que a vitória política traz ou pelo ressentimento da derrota eleitoral. Vai demandar um exaustivo trabalho de redução de animosidades e de sinalização ao lado derrotado por parte do eleito. O problema é que nem todo mundo aceita essa distensão. Afinal, o medo é um excelente instrumento de governo.

Caso Bolsonaro vença, grupos radicais, sentindo-se empoderados pela mudança de governo, vão se estar à vontade de ir às ruas, atuando como milícias políticas, para monitorar e punir opositores do governo, ativistas dos direitos humanos e jornalistas? Ou, em caso de derrota, eles também sairão às ruas para se vingar? Bolsonaro terá coragem de se mostrar solidário com quem pensa diferente? Essas dúvidas pairam sem resposta.

Durante o processo de impeachment, o "vermelho" se tornou a cor errada por um longo tempo, levando a pessoas que vestisse essa cor fosse punido, com ameaças, socos e pontapés. A perseguição ideológica de um certo "macarthismo à brasileira" pode se instalar por aqui, bem como um clima de caça às bruxas a toda ideologia que não seja aquela que não se afirma como ideologia e que, por isso, mais ideológica é. Jornalistas, sejam eles conservadores ou progressistas, podem vir a ser calados, não necessariamente pelo governo, mas por milícias digitais e convencionais que atuariam livremente, caso não contem a "verdade" que interesse a quem esteja no poder.

Já fiz esse relato aqui, mas vale repetir. Perdi a quantidade de vezes que fui xingado e ameaçado ou que me acusaram de coisas que nunca fiz, aos gritos, em restaurantes, supermercados e outros espaços públicos nos últimos anos. Já fui perseguido e chegaram às vias de fato, tendo sido cuspido e derrubado na rua. Grandes empresas já pagaram campanhas de difamação, milícias digitais criaram notícias falsas contra mim. O Ministério Público Federal recebeu e solicitou investigação policial de ameaças graves que recebi. Afinal de contas, tratar de direitos humanos e trabalho escravo é crime no Brasil.

É assustador saber que alguém visto como "normal" e "comum" pode ser capaz, nos contextos histórico, político e institucional apropriados, tornar-se o que convencionamos chamar de monstro. Ou seja, os monstros são nossos vizinhos ou podemos ser nós mesmos. Pessoas que colocam em prática o que leem todos os dias na rede e absorvem em redes sociais: que seus adversários políticos e ideológicos são a corja da sociedade e agem para corromper os valores morais, tornar a vida dos "cidadãos pagadores de impostos", um inferno, e a cidade, um lixo. Seres descartáveis, que vivem na penumbra e nos ameaçam com sua existência, que não se encaixa nos padrões estabelecidos do bem.

A dificuldade de colocar-se no lugar do outro e entender que ele merece a mesma dignidade que sonhamos para nós mesmos esteve sempre presente. Mas não estava distribuída pela internet, conectada pelas redes sociais, amplificada pela popularização de smartphones e organizada por grupos políticos interessados em moldar a opinião pública e o processo eleitoral por meio digital. Fábricas de notícias falsas anônimas estão aprofundando a ultrapolarização, ajudando a levar o país às vias de fato, incitando a população e municiando-a para o confronto. Mas o conflito deflagrado e fermentado pelo rancor ao antipetismo no período eleitoral pode ser apenas o início. O receio é o que pode acontecer no dia seguinte às eleições, dependendo do resultado.

O problema não é apenas um governo que não se preocupe com os direitos fundamentais e sim líderes que não controlem seus seguidores – que, nas ruas ou na rede, queiram eliminar os que são vistos como ameaças,.

Quem pode controlar agora a massa dos seguidores são os candidatos. Espero que isso seja feito rapidamente, sob risco do surgimento de milícias ideológicas, punindo jornalistas e cidadãos comuns por não "pensarem direito".

A democracia, às vezes, não faz estardalhaço ao morrer. Pode ser de dia, ameaçada de estupro depois de votar. De madrugada, com 12 golpes de faca após discutir política. Ou de noite, como uma vereadora negra executada dentro de seu carro e, depois, difamada nas redes sociais.

Atualização: Após a publicação deste texto, Bolsonaro foi questionado pelo repórter Gustavo Maia, do UOL, sobre os episódios de violência envolvendo militantes. Afirmou que a pergunta estava invertida, citando o atentado que sofreu no dia 6 de setembro. "Quem levou a facada fui eu, pô. O cara lá que tem uma camisa minha e comete um excesso, o que é que eu tenho a ver com isso?" Perguntado se condenava o ocorrido, respondeu que lamentava.

Disse não ter controle sobre isso – "Peço ao pessoal que não pratique isso, mas eu não tenho controle sobre milhões e milhões de pessoas que me apoiam" – e afirmou que "a violência" e "a intolerância", na verdade, vêm do outro lado. "Eu sou a prova, graças a Deus, viva disso daí." Analisa o clima como "acirrado", mas que "são casos isolados".

O candidato não tem controle, mas tem influência – e muita. É, portanto, fundamental que reflita e se pergunte: isso é tudo o que tem a dizer sobre a violência envolvendo seus militantes aos seus militantes?

Post atualizado às 21h, do dia 09/10/2018 para inclusão de declaração de Bolsonaro.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.