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Leonardo Sakamoto

Eleição delirante torna Venezuela problema maior que Reforma da Previdência

Leonardo Sakamoto

21/10/2018 13h43

Manifestantes queimam caixões em frente ao Congresso Nacional contra a Reforma da Previdência
Foto: Fabio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil

O Brasil está jogando na lata do lixo a possibilidade de discutir, nestas eleições, o modelo de aposentadoria que quer implantar para as próximas décadas. Dessa forma, entregará ao próximo presidente um cheque em branco para que aprove no Congresso Nacional uma Reforma da Previdência que não fez parte de um projeto de país aprovado pelo voto popular.

Poucos negam que o Brasil precise de mudanças nessa área. Como tenho dito aqui, o país deve fazer uma reforma que o adapte à sua realidade demográfica, mas preserve os direitos dos trabalhadores mais vulneráveis.

O problema é que o governo Michel Temer tentou enfiar goela abaixo uma proposta que não foi largamente discutida com diferentes setores sociais e, ainda em suas últimas versões, mantinha falhas na proteção de grupos mais vulneráveis, como os que ganhariam pensões de até dois salários mínimos e trabalhadores rurais.

Por conta das denúncias oriundas das gravações de Joesley Batista, dono da JBS, Temer abriu os cofres do Estado para comprar votos no Congresso Nacional visando à rejeição de seu afastamento. Sobrou pouco dinheiro e capital político para aprovar mudanças na idade mínima ou mesmo tempo de contribuição.

O tema deveria ter sido tratado, sem açodamento, como parte de um projeto de país, o que – em tese – este período eleitoral permitiria. À população deveria ser garantida uma discussão ampla sobre as consequências das mudanças no sistema de aposentadorias, ouvindo argumentos pró e a favor em propagandas e debates. O que significa o discurso de Fernando Haddad de mexer no regime dos funcionários públicos e depois unificá-lo ao dos demais aposentados? E qual o impacto para a vida das pessoas e para a economia da proposta, aventada por Jair Bolsonaro, de introduzir a capitalização individual? Faltam explicações mais detalhadas nas campanhas e nos programas de governo. E, a partir daí, votar na ideia que preferir, sabendo dos impactos positivos e negativos de sua escolha. Chancelada pelas urnas, haveria legitimidade para essa mudança. Seja qual for a opção, teria respaldo popular.

Mas a campanha eleitoral tratou mais da Venezuela do que da Reforma da Previdência. A população vai sair da eleição sabendo mais sobre diagnósticos e prognósticos (reais e deturpados) a respeito do regime autoritário de Nicolás Maduro do que com informações sobre o futuro de sua própria aposentadoria. Deprimente.

A maior parte da população não entendeu o que significava a Reforma Trabalhista devido a suas mais de 120 alterações, muitas delas técnicas demais para um debate atropelado como o que ocorreu. Está descobrindo a partir de agora, com a precarização dos postos de trabalho já anunciados por empresas, com a obrigação de trabalhadores derrotados na Justiça a pagarem os custos do processo e com o não aumento imediato e significativo da geração de postos de trabalho de qualidade – o que foi prometido à exaustão.

O que estava em jogo com a Reforma da Previdência era bem mais fácil de ser compreendido, para desespero daqueles que buscavam uma saída rápida. Desde o começo, o governo Temer usou do expediente da chantagem para tentar passar à força uma polêmica reforma que não estava em nenhum programa eleito pelo voto popular. O presidente chegou a se gabar que usava sua impopularidade lhe permitia avançar com pautas amargas. De campanhas pagas pelo PMDB com imagens de cidades destruídas, passando por declarações da cúpula de governo de que as próximas gerações vão ranger os dentes e que não haverá recursos para as pensões ou de aliados afirmando que o país mergulhará num inferno sombrio de dor.

O governo poderia ter garantido que quem se aposenta com direito de até dois salários mínimos, ou seja, pobres, manteria as regras atuais. E que nenhuma mudança seria feita tanto no Benefício de Prestação Continuada (pensão dos idosos muito pobres) quanto na aposentadoria especial a trabalhadores rurais da economia familiar (apesar do governo ter afirmado que nada mudaria nas últimas versões de sua proposta, havia contradições nas mudanças previstas entre o artigos 201 e 195 da Constituição Federal, abrindo brechas).

Perguntas ficaram sem ser respondidas adequadamente.

Qual Reforma da Previdência propõem os candidatos à Presidência da República?

Quanto tempo a mais as pessoas terão que trabalhar?

Com qual idade mínima elas se aposentarão?

Quanto tempo de contribuição para obter a pensão mínima e quanto para o teto?

Haverá mudança no benefício social dos idosos muito pobres? E na aposentadoria especial rural?

Qual o modelo adotado? Manter o atual? Capitalização individual, como uma grande poupança ao longo da vida? Um modelo misto? Quais os custos de transição?

Como funcionará as regras de transição?

Quais serão os sacrifícios ampliados sobre os que ganham menos e quais os privilégios mantidos para os que ganham mais?

Haverá debates públicos o ano que vem ou, no final das contas, será meia dúzia de iluminados decidindo a portas fechadas?

Tudo deveria ser explicado em português claro e não em economês empolado – que, para a maioria dos trabalhadores, não é muito diferente do sânscrito ou do aramaico.

Há quem vote em candidatos sem conhecer seus projetos para áreas sensíveis. Preferem acreditar que ele fará tudo ao seu alcance para garantir qualidade de vida e ponto. Entregam, portanto, o cheque em branco citado no início. Ao fazer isso e aceitar que "linhas gerais" sejam apresentadas como programas de governo ou, pior, ao acreditar em um grande "confie em mim", atuam como fãs, não cidadãos.

Espero que os que fizerem isso pelo menos tenham a decência de reconhecer a própria culpa ao invés de infantilmente terceiriza-la quando a reforma aprovada não for de seu agrado. Pois são vocês que estão rifando o seu próprio futuro.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.