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Leonardo Sakamoto

Bolsonaro chama combate à desigualdade social de "coitadismo"

Leonardo Sakamoto

23/10/2018 22h05

Jair Bolsonaro chamou de "coitadismo" as políticas de cotas em entrevista à TV Cidade Verde, do Piauí, nesta terça (23). Na sua opinião, ações afirmativas – instituídas para compensar desigualdades estruturais de determinados grupos sociais – reafirmam o preconceito e dividem a sociedade. Disse que a maioria dos negros que entram na universidade estão "bem de vida", portanto, a política estaria equivocada.

"Isso não pode continuar existindo. Tudo é coitadismo. Coitado do negro, coitado da mulher, coitado do gay, coitado do nordestino, coitado do piauiense. Vamos acabar com isso."

Não é a primeira vez que ele critica as cotas. Em julho, durante entrevista ao programa Roda Viva, da TV Cultura, por exemplo, afirmou que elas dividem o Brasil entre brancos e negros. Na ocasião, questionado sobre a forma que pretendia reparar a dívida histórica da escravidão, respondeu: "Que dívida? Eu nunca escravizei ninguém na minha vida".

Não sou contra que competência e experiência individuais sejam parâmetros de avaliação. Uma coisa é o mérito em si. Outra, um sistema de poder que utiliza um discurso deturpado sobre o mérito para manter a desigualdade social como o elemento que nos define como nação. Pois as pessoas não têm acesso aos mesmos subsídios e direitos para começarem suas caminhadas individuais e, portanto, partem de lugares diferentes. Uns tendo tudo desde sempre, comida e livros. Outros tendo que escolher entre comprar comida ou um livro. E outros levando enquadro da polícia, que acha que eles roubaram o livro de alguém simplesmente por serem negros, após terem feito a escolha de comprá-lo ao invés da comida.

Os três podem chegar ao "topo". Mas se o primeiro caso alcança o cume mais vezes, o segundo é um em cada 100 mil e o terceiro um em cada milhão. Por isso, "histórias de superação" são contadas e recontadas à exaustão: porque são úteis para convencer os outros que se um consegue, todos podem. Dependeria apenas de cada um e de sua força de vontade e dedicação. Ao assumirmos essa mentira como verdade, jogamos a responsabilidade de crimes históricos como a escravidão nos descendentes daqueles que, uma vez libertos, não foram inseridos na sociedade. Nem tiveram acesso a direitos para que pudessem ser donos de suas próprias vidas.

Há muita gente contrária a encontrar formas de equalizar as condições historicamente desproporcionais. Acreditam que a única maneira de garantir Justiça é tratar desiguais como iguais e aguardar que as forças do universo façam o resto.

E esse discurso é tão bem ensinado que, não raro, encontra-se apoiado por pessoas que, apesar de largarem em desvantagem, conseguiram "chegar lá". E ouvimos coisas como: "Tive uma infância muito pobre e venci mesmo assim. Se eu consegui, todos conseguem". Parabéns. Mas ao invés de pensar que todos têm que comer o pão que o diabo amassou como você, não seria melhor pensar que um mundo melhor seria aquele em que isso não fosse preciso?

Como não é possível acabar com o direito a qualquer herança (o que, hipoteticamente levaria cada geração a começar do zero, mas destruiria/transformaria a sociedade como a conhecemos), o jeito é continuar apoiando medidas compensatórias e que tratam diferentes de forma diferente.

E seguir demonstrando muito amor e paciência com quem acha que "quem não vence por conta própria é vagabundo".

Há quem não se indigna diante do fato da mulher negra ganhar, em média, muito menos que o homem branco para uma mesma função. Indigna-se com quem diz que racismo existe.

Não fica revoltado diante da morte de jovens pobres e negros. Revolta-se com a filha negra da empregada se sentar no mesmo banco de faculdade que eles.

Não acha preconceito dar porrada no sujeito que foi acusado de roubar o próprio carro no estacionamento de um supermercado por ser negro. Para ele, preconceito são cotas.

Seria cômico se não fosse trágico o perigo representado por um grupo branco (com direitos assegurados) que se manifesta de forma organizada – e, por vezes, violenta – diante da luta de outros grupos por sua dignidade, historicamente negada.

Lembrando que "maioria" e "minoria" não são uma questão numérica, mas dizem respeito ao nível de efetivação da cidadania: o grupo hegemônico reivindica a manutenção de privilégios, garantindo, dessa forma, o espaço que já é seu – conquistado, muitas vezes, por violência, a ferro e fogo.

Ir contra a programação que tivemos a vida inteira, através da família, de amigos, da escola, da mídia, de algumas igrejas (em que pastores pregam que "africanos são amaldiçoados por Deus") e de lideranças políticas é um processo longo pelo qual todos nós temos que passar. Mas necessário.

Todos nós, nascidos neste caldo social de sociedades de herança escravista, como os Estados Unido e o Brasil, somos preconceituosos a menos que tenhamos sido devidamente educados para o contrário. Pois os que ofendem uma pessoa negra ou gay no transporte público, só fazem isso por estarem à vontade com o anonimato e se sentirem respaldados por parte da sociedade.

Toda a vez que alguém trata da questão da desigualdade social e do preconceito que negros e negras sofrem no Brasil (herança cotidianamente reafirmada de um 13 de maio de 1888 que não permitiu criar bases para a autonomia real dos trabalhadores africanos e seus descendentes), é linchado em redes sociais.

Pois, como todos sabemos, não há tratamento diferenciado para quem é negro, gay, nordestino no Brasil. "Isso é coisa de negro recalcado." Ou exploração sexual de crianças e adolescentes. "As meninas é que pedem e depois a culpa é dos homens?" O machismo? Uma mentira "criada por feminazis para roubar nossos direitos". E a homofobia, uma invenção "daquela bicha do Jean Wyllys". Não há assassinatos relacionados a questões étnicas. "Eles é que estão no lugar errado e na hora errada, pois os 'homens de bem' seguem a lei e nada acontece com eles."

Bolsonaro ignora tudo isso ao chamar a luta por igualdade de direitos de "coitadismo".

Ah, coitados dos homens brancos e héteros que choram, sentindo-se injustiçados, sob o espólio tirado dos derrotados…

Em tempo: O candidato Fernando Haddad divulgou informação falsa ao acusar o general da reserva Hamilton Mourão, candidato a vice na chapa de Bolsonaro, de ter sido torturador durante a ditadura. Citou como base o relato do cantor Geraldo Azevedo – que afirmou que o militar atuou como torturador no local onde ele havia ficado preso. Depois, diante da informação de que sua prisão ocorreu antes de Mourão entrar no Exército, o cantor se corrigiu. Acusar alguém injustamente de tortura, além das óbvias consequências legais, é um desfavor a quem critica a apologia a esse feita por Bolsonaro e luta para que a sociedade leve isso a sério.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.