Topo

Leonardo Sakamoto

Bolsonaro ataca a Folha: Até onde vai o autoengano de que ficará tudo bem?

Leonardo Sakamoto

30/10/2018 17h39

O presidente eleito, Jair Bolsonaro, durante a entrevista ao Jornal Nacional, da TV Globo, nesta terça (29). Imagem: Reprodução

Desde o início de 2016, escrevi repetidas vezes neste espaço que Jair Bolsonaro tinha grandes chances de se tornar presidente e que isso representaria, sem sombra de dúvida, um risco à democracia e à liberdade de imprensa. Cansei de ouvir de analistas, especialistas e colegas de profissão a impossibilidade disso – mesmo com as ruas e as redes rugindo outra conjuntura nos últimos dois anos.

Da mesma forma, estamos repetindo há meses que seu governo mostra sinais de que irá desrespeitar as liberdade de expressão e de imprensa, quando houver material viés crítico a ele, fomentando um macarthismo à brasileira. Perseguirá, com isso, veículos de comunicação, jornalistas, intelectuais, artistas, lideranças sociais, ambientais e trabalhistas. E, novamente, o que ouvimos de volta de muita gente boa e que respeito é que isso não vai acontecer porque "a instituições estão funcionando normalmente".

Logo após concretizada a vitória do deputado nas urnas, muitos dos negacionistas passaram a tentar vender uma imagem de Bolsonaro que não condiz com a realidade, talvez no intuito de normalizá-lo. Ou na crença de que ele, por bom senso, irá vestir essa nova imagem e proteger as instituições, como a imprensa. Um erro, pois não deveríamos analisar com base na fé, mas nos fatos.

Muitos simplesmente ignoraram o primeiro discurso que ele fez após eleito, improvisado, mas sincero, via live do Facebook, no qual abusou do militarismo e não fez uma sinalização concreta para curar as feridas deixadas pela guerra eleitoral. Parece que as pessoas só tiveram olhos ao segundo discurso, escrito por assessores e transmitido pelas TVs, em que se comprometeu com liberdades e com a Constituição. Ouvi e li repetidas vezes que isso seria a prova de ele estava caminhando no sentido da distensão e pregando a União nacional.

Daí, na noite desta terça (29), Bolsonaro aproveitou uma entrevista no Jornal Nacional, da TV Globo, para atacar, novamente, a Folha de S.Paulo, um dos mais relevantes jornais do país: "por si só, esse jornal se acabou". As denúncias do jornal foram uma pedra no sapato do candidato, entre elas a de que empresários teriam bancado o disparo de milhões de mensagens de WhatsApp favoráveis à sua candidatura – o que está sendo investigado pela Justiça.

A Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji) afirma, em nota, que recebeu "com apreensão as declarações dadas pelo presidente eleito, Jair Bolsonaro (PSL), a respeito da imprensa nas últimas 48 horas, entre a confirmação de sua vitória nas urnas e as primeiras entrevistas às emissoras de televisão brasileiras". O jornal também foi defendido por políticos, jornalistas, entre outras pessoas e entidades.

O direito à liberdade de expressão e de imprensa é garantido pela Constituição Federal e pelos tratados internacionais que o país assinou. Caso veja erro ou má fé em um conteúdo publicado por uma empresa jornalística, um político deveria buscar, junto ao veículo de comunicação, seu direito de resposta. E se isso for insuficiente, ir à Justiça atrás de reparação. E não incitar seus seguidores contra a Folha, como ocorreu no comício que fez por teleconferência na avenida Paulista, em São Paulo, no domingo (21), e em postagens nas redes sociais para milhões de pessoas. Isso tem consequências graves. A repórter que fez a matéria, Patrícia Campos Melo, segue ameaçada, por exemplo.

Durante a campanha, parte dos apoiadores de Jair Bolsonaro passou a atacar qualquer jornalista que trouxesse notícia, análise ou opinião crítica sobre seu candidato. Atiçadas por formadores de opinião simpáticos a ele, que postam declarações grávidas de ódio, campanhas de difamação nas redes sociais e grupos de WhatsApp nos deram uma mostra do que pode ser a barbárie contra os profissionais de imprensa a partir do ano que vem.

Como já disse aqui, a violência contra jornalistas nunca foi monopólio de bolsonaristas, como mostram os registros de agressões de petistas, como na manifestação que antecedeu a prisão de Lula. Mas parece que eles estão se esforçando para que seja. E entrevistas como essa de Bolsonaro empoderam ainda mais as hordas. Na festa pela vitória no domingo (28), também na avenida Paulista, outra repórter da Folha, Anna Virginia Balloussier foi cercada e hostilizada por eleitores do deputado. Foram registrados outros casos de violência contra jornalistas envolvendo, ao menos, profissionais de O Povo, TV Tribuna, Diário de Pernambuco e do RTL Nieuws também no domingo.

Bolsonaro pode não gostar da cobertura de determinados jornais, revistas, sites, canais de rádio e de TV, do posicionamento de colunistas e blogueiros e discordar profundamente da pauta conduzida por uma repórter. Mas o respeito aos jornalistas, sejam eles de veículos tradicionais ou alternativos, mídia grande ou pequena, liberal ou conservadora, segue sendo um dos pilares da democracia. Sem uma imprensa livre, o poder políticos e econômico estaria bem à vontade para ser mais tosco do que já é.

O problema não são suas ameaças de bloquear anúncios públicos. Isso é bobagem para entregar à horda de fãs de alguma munição para as redes sociais. A Folha, como tantos outros veículos, não depende dessa verba, mas de leitores que considerem importante defender a democracia e um espaço plural de debate. Vai continuar circulando e fiscalizando o governo com ou sem anúncios. Outros governos, como o de Lula e o de Temer, já agiram dessa forma, mirando veículos de diferentes espectros ideológicos com o corte de verba publicitária e a vida seguiu seu curso.

O problema é que Bolsonaro tem copiado o modus operandi de Donald Trump. Elegeu a parte não-alinhada da imprensa como um de suas inimigos durante a campanha e, agora, mantém essa batalha acesa. Isso gera uma constante instabilidade que provoca um medo contínuo quanto a esse inimigo. E, dessa forma, consegue manter controle.

Os ataques a jornalistas não se resumem a enxurradas de críticas, o que faria parte do debate público. Invade sua vida privada, distorce fatos, expõe dados pessoais, ameaça filhos e pais. A perseguição é sempre mais violenta quando o alvo são mulheres, quando o ataque também ganha cunho sexual. Por vezes, transborda a rede e vai para a rua, para o restaurante, para a porta da casa. O processo de ataque aos jornalistas se assemelha à tortura – instrumento de trabalho do açougueiro Brilhante Ustra, assassino da ditadura militar, apontado como herói por Bolsonaro e por seu vice, Hamilton Mourão. Tudo isso não é feito para o jornalista em questão seja punido pelo que fez, mas para que, traumatizado, nunca mais tenha coragem de tratar dele novamente.

Sempre defendi que Bolsonaro pode ser muita coisa, mas não é burro. Pelo contrário, ninguém sai do zero, sem padrinho, sem estrutura partidária, e chega à Presidência da República se não for esperto politicamente (ou virtuoso, no sentido que Nicolau Maquiavel deu à palavra) para entender a conjuntura e surfá-la. Sempre levei a sério o que disse, mesmo quando pregava no deserto. E, portanto, não acredito que cometerá um estelionato eleitoral quanto às promessas de tentar varrer e banir aqueles que veja como adversários.

Se conseguirá isso ou não vai depender do nível de fiscalização e resistência que for feita a atos antidemocráticos. E, para tanto, da consciência da população sobre o que está acontecendo. Ou seja, a imprensa se torna ainda mais necessária quando está sob ataque.

Por que parte da sociedade, jornalistas inclusos, insiste, de forma arrogante ou ingênua, em fazer de conta que ele não fará o que ele vem repetindo que fará? Por que não se trata o presidente eleito como a ameaça a certas liberdades que ele pode ser? Vai precisar de quanta gente ameaçada, presa ou morta para que voltemos atrás em nossa fé de que as instituições estão funcionando normalmente?

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.