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Leonardo Sakamoto

É humilhante para nós um jovem ser morto por homofobia na avenida Paulista

Leonardo Sakamoto

23/12/2018 05h47

O cabeleireiro Plínio Henrique de Almeida Lima foi assassinado com uma facada em uma das esquinas mais movimentadas de São Paulo, a das avenidas Paulista e Brigadeiro Luís Antônio, na noite desta sexta (21). Ele estava de mãos dadas com o marido e caminhavam com outro casal quando passaram a receber ofensas homofóbicas de dois homens. Após uma confusão, ele foi esfaqueado e não resistiu.

Plínio era gay, jovem negro e pobre em um lugar onde as vidas de gays, de jovens negros e de pobres não valem muito.

Não foi a primeira e não será a última vítima da intolerância, do racismo e da homofobia por aqui, claro. Mas, neste momento, muitos indivíduos e grupos de extrema direita que apoiaram a eleição de Jair Bolsonaro sentem-se empoderados para fazerem o que quiserem após sua vitória devido aos discursos preconceituosos do presidente eleito. Acreditam que qualquer ação contra minorias terá a anuência ou pelo menos a complacência do Estado – e estão celebrando isso nas ruas e nas redes. Pressionado a se manifestar durante a campanha, Bolsonaro frisou que não irá tolerar nenhum crime, mas não se apaga anos de declarações preconceituosas com um punhado de frases frias na direção contrária.

Muitos dos envolvidos em casos de violência contra homossexuais – como os dois criminosos foragidos –  colocam em prática o que devem ter ouvido a vida inteira: "bichas" são a corja da sociedade e agem para corromper os nossos valores morais e tornar a vida dos "cidadãos pagadores de impostos" um inferno. Seres descartáveis, que vivem na penumbra e nos ameaçam com sua existência, que não se encaixa nos padrões estabelecidos pelos "homens de bem". Pessoas que se parecem conosco, trabalham no mesmo local, têm o mesmo gosto para bares e viagens, vestem-se como nós e, portanto, precisam ser destruídos porque são a prova de que nós podemos também ser "corrompidos".

Como já disse aqui, líderes políticos, religiosos fundamentalistas, comunicadores e humoristas dizem que não incitam a violência. Mas não são suas mãos que seguram a arma, mas é a sobreposição de seus argumentos e a escolha que fazem das palavras ao longo do tempo que distorce a visão de mundo das pessoas e torna o ato de atacar banal. Suas ações e regras redefinem, lentamente, o que é ética e esteticamente aceitável, visão que depois será consumida e praticada por terceiros. Estes acreditarão estarem fazendo o certo, quase em uma missão civilizatória ou divina, e irão para a guerra.

Bolsonaro, mais do que ninguém, sentiu na pele o significado da loucura política e do ódio através do atentado abominável que sofreu no início de setembro. E como é considerado exemplo para muita gente e prometeu, repetidas vezes, que iria pacificar o país, terá que agir mais firmemente para ajudar a desarmar o discurso da intolerância à diferença. Pois casos como o de Plínio, que já eram desesperadoramente comuns, podem ser tornar mais corriqueiros ainda.

Outra vítima, esta fatal, dessa loucura foi o compositor e mestre de capoeira Romualdo Rosário da Costa, o Moa do Katendê, de 63 anos, assassinado com 12 golpes de faca após ter defendido Fernando Haddad em uma discussão sobre as eleições presidenciais, por um defensor de Jair Bolsonaro, num bar na periferia de Salvador, na madrugada do dia 8 de outubro. O criminoso voltou até sua casa, pegou a arma para matar a vítima. O inquérito do Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa, encaminhado ao Ministério Público, afirma que a morte foi motivada por briga política. Doze golpes.

Por fim, a minha timeline passou o ano abarrotada de histórias de mortes e violência com relação com racismo, homofobia, transfobia, discriminação social e intolerância política.

Em 2018, grupos religiosos fundamentalistas reafirmaram, por exemplo, a defesa da restrição do conceito de família a um homem, uma mulher e filhos. Segundo a família de Plínio, ele e o marido estavam planejando adotar uma criança. Não seriam família, portanto, mas abominação.

O mais intrigante é que, como já disse aqui, tenho a certeza de que se Jesus de Nazaré, o personagem histórico, vivesse hoje, defendendo a mesma ideia central presente nas escrituras sagradas do cristianismo (que, por ser tão simples, não é entendida por muitos cristãos) e andando ao lado dos mesmos párias com os quais andou, seria humilhado, xingado, surrado, queimado, alfinetado e explodido. Chamado de defensor de mendigo e de sem-teto vagabundo. Olhado como subversivo, alcunhado como agressor da família e dos bons costumes. Violentado e estuprado. Rechaçado na propaganda eleitoral obrigatória em rádio e TV. Difamado nas redes sociais. Transpondo para os dias de hoje no Brasil, talvez Jesus fosse negro, pobre, gay. E levaria porrada daqueles que se sentem ungidos pelo divino.

Se houver um Deus – e eu duvido muito que exista – ele morre de vergonha de mostrar a sua criação humana para os amigos. Não por causa daqueles que tocam a vida da forma que os faz mais felizes. Mas por conta dos que matam e matariam em seu nome. E, não nos enganemos: eles são muitos. E, para vários deles, falta apenas uma oportunidade.

Como estar armado na esquina da Paulista com a Brigadeiro, numa sexta à noite, com o peito estalando de ódio.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.