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Leonardo Sakamoto

Legado de Temer será democracia mais frágil e flexibilização da dignidade

Leonardo Sakamoto

24/12/2018 23h01

Foto: Foto: André Coelho/O Globo

Michel Temer fez de seu último pronunciamento natalino como presidente da República, nesta segunda (24), um discurso de agradecimento e superação – como um jogador que, ao final da temporada, agradece a Deus, à família e a todos que acreditaram nele. Temer acredita que ganhou o campeonato. Mas 73% da população que considera seu governo como ruim e péssimo discorda.

"Ficam as reformas e os avanços, que já colocaram o nosso país em um novo tempo", disse ele. O pacote de reforma do contrato de compra e venda da força de trabalho, representado pela Reforma Trabalhista e a Lei da Terceirização Ampla, é um de seus orgulhos.

Nas peças publicitárias, nos releases à imprensa, nas entrevistas em programas de TV, a aprovação dessa reforma era apresentada como o que faltava para uma torrente de leite e mel corresse pelo meio-fio das ruas e avenidas nas grandes cidades brasileiras e pelas estradas de chão de terra batida no campo. E, trotando por elas, brilhantes unicórnios vomitariam arco-íris perfumados sobre as contas bancárias dos mais pobres. Não foi o que aconteceu. E a geração de empregos ainda engatinha.

Durante meses, acompanhei, no Congresso Nacional, um rolo-compressor de interesses econômicos atropelar a necessária discussão sobre a atualização na legislação trabalhista em nome de um projeto que facilitou a precarização da proteção à saúde e segurança do trabalhador. Qualquer tentativa de aprofundar a discussão era abortada. Propostas para realizar uma Reforma Sindical, que fortalecesse os bons representantes e desidratasse os picaretas antes da Reforma Trabalhista, com mudança na unicidade sindical, por exemplo, eram vistas com desdém.

Não havia espaço para o diálogo, apenas a pressa. Tanto que o Senado Federal abriu mão de seu papel de casa revisora, aceitando aprovar o texto que veio da Câmara dos Deputados sem modificações. Engoliram a mentira de que o governo se empenharia para retirar pontos com os quais os senadores não concordavam. Temer publicou uma medida provisória que, depois, caducou e ficou por isso mesmo. A Presidência da Câmara dos Deputados, que não tinha interesse na MP, também não se esforçou em votá-la. A possibilidade de gestantes e lactantes trabalharem em ambientes insalubres acabou sendo amenizada apenas recentemente e, mesmo assim, sem as garantias plenas de proteção a essas mulheres. Quanto à jornada intermitente, segue sem regulamentação.

Afinal a Reforma Trabalhista não era um projeto para ser construído coletivamente, debatido com patrões e empregados, mas a entrega de uma encomenda, pagamento pelo apoio de parte do empresariado à troca de comando na República. Ou seja, não foi Deus quem o colocou lá, mas quem acha que é.

Parte da população aturdida com a aprovação de leis que reduzem a proteção social dos mais vulneráveis, com os perdões bilionários aos mais ricos e com a comercialização de votos de deputados federais para que rejeitassem as denúncias criminais contra ele no Supremo Tribunal Federal deixou de acreditar na coletividade e buscou construir sua vida tirando o Estado da equação.

Essa população pobre cozinhou sua insatisfação em desalento, impotência, desgosto e cinismo. Isso não estoura em manifestações com milhões nas ruas, mas corrói a crença nas regras e instituições que nos mantém como país. Durante o governo Temer, muitos deixaram de confiar na política como arena para a solução dos problemas cotidianos, o que é equivalente a abandonar o diálogo visando à construção coletiva. Caídas em descrença sob seu mandato, instituições vão levar muito tempo para se reerguerem – e isso, se conseguirem. Tudo isso abriu espaço para figuras que se vendem como salvadoras da pátria.

O principal legado do governo Temer é, na verdade, uma democracia mais frágil, lastreada em instituições esgarçadas.

Esperemos que a democracia brasileira seja suficientemente resiliente para se recuperar desses choques e se manter firme diante de novos ataques contra garantias fundamentais que vêm por aí a partir de Primeiro de Janeiro. Viva a alternância de poder! Mas viva também a manutenção das conquistas civilizacionais na forma de direitos econômicos, sociais, ambientais, culturais, civis e políticos.

Pois a ironia será, no final das contas, sentir saudades do governo Temer.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.