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Leonardo Sakamoto

Governo vandaliza livro didático ao permitir anúncio e reduzir diversidade

Leonardo Sakamoto

09/01/2019 17h41

O governo Jair Bolsonaro, no dia seguinte à sua posse, alterou um edital para a compra de livros didáticos para estudantes do 6º a 9º ano a fim de retirar trecho que vetava a presença de publicidade e a exigência do produto estar isento de erros de revisão e impressão. Também excluiu a necessidade de que ilustrações nos livros retratem a diversidade étnica da população brasileira e a pluralidade social e cultural do país. Ou seja, um livro pode contar apenas com famílias que parecem saídas de alguns comerciais de marcas famosas, só com brancos – indo na contramão do país, uma vez que "brancos" já estão em menor número que "pardos", de acordo com o IBGE. Aliás, de repente, a própria marca pode anunciar nos livros agora.

Também caiu a exigência de referências bibliográficas que mostrem de onde foi tirado o conteúdo apresentado e suprimidos compromissos, como o combate à violência contra a mulher e a promoção da cultura quilombola e dos povos do campo.

A campanha de Jair Bolsonaro havia prometido usar a educação como instrumento de difusão de suas posições de extrema-direita na formação de crianças e adolescentes. Mas é importante frisar que o respeito às mulheres e à diversidade social, cultural e étnica, por exemplo, não são pautas da esquerda ou da direita, mas medidas civilizatórias. A negação disso tem nome: barbárie.

Da mesma forma, reduzir o cuidado com a qualidade acadêmica e técnica de uma publicação didática representa um profundo desprezo pelo conhecimento.

Em outubro do ano passado, livros sobre temáticas relacionadas a direitos humanos que estavam na Biblioteca Central da Universidade de Brasília tiveram páginas rasgadas e riscadas. O vandalismo já vinha ocorrendo há meses, mas só com novas obras danificadas percebeu-se um padrão temático. Naquele momento, escrevi que a preocupação com o caso não deveria ser o valor físico das obras, mas o que isso significava: um sinal de que as coisas estavam tomando um rumo sinistro, com o desdém pela dignidade e o menosprezo pelo conhecimento. Coisas que não se repõe de uma hora para outra, mas leva-se uma geração para serem reconstruídas.

O que leva alguém a se opor ao combate à violência contra as mulheres? Ou reconhecer a importância de encarar a pluralidade da população para a formação de novas gerações sem preconceitos? Qual a diferença entre um edital como esse e um livro rasgado em uma biblioteca? Em ambos os casos, impede-se as pessoas de terem acesso a conteúdo que poderia ser útil à efetivação da dignidade.

Não é o primeiro caso, nem será o último envolvendo poder público. Câmaras Municipais e Assembleias Legislativas defendem um resgate, direto do século 16, do Index Librorum Prohibitorum. Isso sem contar que o material didático para conscientizar jovens de que espancar amigos gays e lésbicas não é legal, chamado equivocadamente de "kit gay", é criticado por pessoas que nunca leram nada a respeito, mas acreditaram em políticos que dizem o que elas devem pensar.

Como já disse aqui, antes, se alguém me mostrasse uma imagem de pessoas enlouquecidas em torno de montanhas de livros em chamas, eu me lembraria de "Fahrenheit 451", de Ray Bradbury – que foi transposto para a tela por François Truffaut (1966) e Ramin Bahrani (2018). Na obra de ficção, bombeiros queimavam livros, proibidos sob o argumento de que opiniões individuais tornavam pessoais antissociais e infelizes. O pensamento crítico era combatido. Quem lia era preso e "reeducado". Se uma casa tinha livros, bombeiros eram chamados para por tudo a baixo. Hoje, se me mostrassem uma imagem assim, logo me perguntaria: onde desta vez? Algum grupo fundamentalista islâmico, cristão ou judeu? Interior dos Estados Unidos? Neonazistas europeus? Síria? Coreia do Norte? China? Venezuela? São Paulo, Rio ou uma grande cidade brasileira?

No dia 10 de maio de 1933, montanhas de livros foram criadas nas praças de diversas cidades da Alemanha. O regime nazista queria fazer uma limpeza da literatura e de todos os escritos que desviassem dos padrões impostos. Centenas de milhares queimaram até as cinzas. Einstein, Mann, Freud, entre outros, foram perseguidos por ousarem pensar diferente da maioria. A Alemanha "purificou pelo fogo" as "ideias imundas" deles, da mesma forma que, durante a Contra-Reforma, a Inquisição purificou com fogo a carne, o sangue e os ossos daqueles que ousaram discordar.

A opinião pública e parte dos intelectuais alemães se acovardaram ou acharam pertinente o fogaréu nazista, levado a cabo por estudantes que apoiavam o regime. Deu no que deu. E hoje vemos muitos se acovardarem diante de ondas intolerantes e abusivas frente à educação.

O governo ainda tem tempo para corrigir a edição e dizer que foi um equívoco. Pois caso rejeite publicações por conta dessas mudanças, criará, simbolicamente, sua própria pira de livros.

Atualização: Diante da repercussão negativa, o governo declarou, na tarde desta quarta (9), que vai anular a alteração no edital e responsabilizou a gestão Michel Temer pelo ocorrido. Veja a nota divulgada pelo ministério da Educação:

O ministro da Educação, Ricardo Vélez Rodríguez, decidiu tornar sem efeito o 5º Aviso de Retificação do edital do PNLD 2020, publicado no dia 2 de janeiro, tendo em vista os erros que foram detectados no documento cuja produção foi realizada pela gestão anterior do MEC e enviada ao FNDE em 28 de dezembro de 2018. O MEC reitera o compromisso com a educação de forma igualitária para toda a população brasileira e desmente qualquer informação de que o Governo Bolsonaro ou o ministro Ricardo Vélez decidiram retirar trechos que tratavam sobre correção de erros nas publicações, violência contra a mulher, publicidade e quilombolas de forma proposital.

Mas o ex-ministro da Educação Rossieli Soares nega a informação. "Todos os atos a partir do dia 1º de janeiro são de responsabilidade do novo governo", afirmou. 

Post atualizado às 20h39, do dia 09/01/2019, para inclusão de informação do ex-ministro da Educação.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.