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Leonardo Sakamoto

Vale promete desativar dez "bombas-relógio". Mas mudará o perfil explosivo?

Leonardo Sakamoto

31/01/2019 05h02

Foto: Daniel Marenco / Agência O Globo

Diante da comoção causada pelas dezenas de corpos já encontrados e pelas outras dezenas ainda soterrados na lama de Brumadinho, a Vale divulgou que reduzirá em 10% sua produção de minério de ferro devido à desativação de dez barragens de rejeitos construídas nos moldes daquela que rompeu no Córrego do Feijão. Diz que vai gastar R$ 5 bilhões com isso.

Parte dos investidores se deram por satisfeitos com a medida, mas há muita gente que tem considerado os anúncios, até agora, insuficientes.

Brumadinho é o segundo episódio de um desastre único, que começou em Mariana. Essa tragédia em dois atos trouxe a atenção do mundo para a empresa, que se vende como exemplo de sustentabilidade. Se o de 2015 representou a maior tragédia ambiental da história deste país, este, de 2019, é nosso maior acidente de trabalho.

A Vale, que já era denunciada sistematicamente por violações trabalhistas e à dignidade humana por grupos de organizações sociais e sindicatos, como a articulação Justiça nos Trilhos, conseguiu trazer para si o interesses de jornalistas de todo o mundo com a tragédia. Além das reclamações de movimentos sociais no Pará, no Maranhão, no Rio de Janeiro e em Minas Gerais, também há registros, por exemplo, de conflitos com trabalhadores de suas subsidiárias no Canadá e com comunidades tradicionais de Moçambique e do Peru.

A empresa terá que fazer muito mais do que desativar suas dez "bombas-relógio" e implementar métodos mais limpos e racionais de produção mineral. O que passa por mitigar os impactos e reparar os danos causados – não, é claro, pelo padrão "Mariana", que inclui uma bela empurrada de barriga. E, desta vez, deveria, literalmente, pagar realmente pelo que fez.

Para além das eventuais responsabilidades criminais identificadas, indenizações bilionárias precisam ser desembolsadas ao conjunto dos trabalhadores ou suas famílias, às comunidades atingidas e à recomposição do meio ambiente. Há uma diferença entre bilhões serem congelados em contas no momento de crise e bilhões serem efetivamente desembolsados pela empresa.

Como já disse aqui, a Reforma Trabalhista limitou a 50 salários contratuais o teto da indenização por dano moral a trabalhadores ou suas famílias – indenizações para danos materiais não mudaram. Caso o Supremo Tribunal Federal declare essa regra inconstitucional, conforme pediu a procuradora-geral da República, o caminho está aberto para indenizações maiores, coerentes com o ocorrido. Nunca serão proporcionais à dor de quem não será capaz de enterrar seus entes queridos, mas, ao menos, fará com que a empresa, seus acionistas e gestores entendam melhor isso.

Há quem ache injusto grandes indenizações por danos morais, mas elas têm caráter didático. Há quem acredite que isso irá tirar empregos, mas esse rigor salva vidas. Pois o objetivo não é levar ao não é enriquecimento ilícito, mas produzir um efeito dissuasivo real sobre o comportamento da empresa. Não a ponto de inviabilizá-la, mas o suficiente para que não queira repetir as falhas ou a busca pelo lucro fácil.

Não houve ainda grande movimentação do governo federal no sentido de aproveitar o timing da tragédia para uma discussão profunda sobre a forma pela qual o extrativismo mineral opera no país. Dessa forma, a atual administração perde uma oportunidade de não se igualar aos seus antecessores que, presos a relações estabelecidas com setores econômicos poderosos, fecharam os olhos, permitindo que chegássemos a esse ponto. É preciso uma nova regulamentação da mineração no Brasil, que conte com efetiva participação de comunidades atingidas e foco na responsabilidade empresarial e no direito ao território e à dignidade humana.

A percepção da comunidade internacional de que a Vale é uma empresa problemática deve durar mais tempo do que as buscas dos corpos em Brumadinho. Se ela tentar aplicar apenas medidas que deveriam ter sido tomadas em 2015 e não caminhar no sentido de uma mudança na forma como ela se relaciona com a sociedade à sua volta, não terá refresco por parte da sociedade civil e parte da imprensa. Neste momento, em que a marca da Vale se associa à morte e devastação, os que vivem e trabalham nas áreas de impacto da companhia, dentro e fora do país, aumentam as cobranças para que ela coloque sua saúde e segurança antes de lucros e dividendos.

Seria otimismo irracional falar em uma reação em cadeia para fazer com que a empresa passe por uma transformação profunda. Mas se este episódio sair caro, muito caro, para a Vale, o custo de uma prevenção real será mais vantajoso do que aquele de manter tudo como sempre foi, que mantém uma lâmina sob o pescoço de seus trabalhadores e vizinhos.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.