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Leonardo Sakamoto

Tragédia no Flamengo: Brasil vê sequência de mortes estúpidas e evitáveis

Leonardo Sakamoto

08/02/2019 20h34

Foto: Thiago Ribeiro/AGIF

Um incêndio em um alojamento no centro de treinamento do Flamengo, que hospedava atletas de categorias de base entre 14 e 16 anos, matou dez adolescentes e feriu outros três (um deles está em estado grave), na manhã desta sexta (8). As causas ainda serão apuradas, mas o clube tem responsabilidade pelas mortes, uma vez que não foi capaz de garantir um meio ambiente de trabalho seguro a eles.

É uma tragédia inominável por uma série de razões. Envolve um esporte que é paixão nacional e um negócio bilionário (com gente que ganha muito dinheiro), mas também um dos times mais tradicionais e um punhado de crianças que morrem enquanto perseguiam seus sonhos. Tanto aquele que prometia um futuro de glórias, quanto o que falava de uma vida mais digna para eles e suas famílias.

Foi um soco no estômago da capital carioca, que ainda velava as seis mortes causadas pela incompetência e o descaso do poder público diante das fortes chuvas que caíram na noite de quarta (6). Pois chamamos equivocadamente de "desastres naturais" os óbitos causados por tempestades, inundações, entre outros eventos, sendo que é possível prever, reduzir e evitar pacotes de mortes. Providências que não incluem apenas um sistemas de alerta decente, mas também a execução de políticas de habitação, saneamento, contenção de encostas, dragagem de rios, limpeza de vias. Ou seja, presença do poder público.

O mesmo pode ser dito da barragem da Vale, que rompeu em Brumadinho (MG). Tão logo a tragédia aconteceu, escrevi que, em pouco tempo, se repetiria o que ocorreu após o rompimento da barragem do Fundão, em Mariana, em 2015: as manchetes dariam lugar a outras tragédias, até que a contagem regressiva do cronômetro zerasse e surgisse uma nova Mariana ou um novo Brumadinho.

No momento em que publico este texto, já são mais de 330 mortos, dos quais 157 corpos foram encontrados. E a lama tóxica, que cobriu trabalhadores e comunidades, oriunda dos resíduos de mineração, segue matando a vida no rio Paraopeba em direção ao rio São Francisco. A empresa declarou que está desativando dez barragens semelhantes à que se rompeu no dia 25 de janeiro como prevenção. Faz isso com três anos de atraso ao perceber que a repercussão global de sua inação levaria a pesados prejuízos econômicos.

As três tragédias são tão estúpidas quanto evitáveis. A indignação pela mais atual borra a percepção sobre a anterior. E assombrados, de indignação em indignação, diante das telas da TV ou do smartphone, as pessoas torcem para que não sejam os seus nomes ou das pessoas que amam as vítimas na próxima lista da próxima tragédia a ser divulgada na internet. A História e o Jornalismo existem para que sejamos capazes de aprender e impedir que determinadas tragédias se repitam. Mas, entorpecidos pela sequência de pacotes de mortes estúpidas, esquecemos a noção de Justiça.

O poder público não esquece por lapso, mas conscientemente. Quantas pessoas lembram que, em janeiro de 2011, 918 pessoas morreram e 30 mil foram desalojadas por conta das chuvas, inundações, deslizamentos e desabamentos na Região Serrana do Estado do Rio de Janeiro. Há 90 que nunca foram encontradas e boa parte dos atingidos ainda aguardam a ajuda devida. Passados oito anos, seguimos contando corpos que morrem por causa das "chuvas".

O setor privado também. Mariana não precedeu Brumadinho, são duas partes de uma mesma tragédia. A busca pelo lucro acima de tudo e a certeza de impunidade fizeram com que a Vale não agisse como deveria há três anos, quando foi sócia da tragédia através da Samarco, sua empresa em parceria com a BHP Billiton.

E vivendo como se cada tragédia fosse uma novidade e não a continuidade da incompetência, da ignorância e da impunidade, seguimos presos num loop temporal. Que vai devorando gente hoje para que esqueçamos da gente que foi, ontem, devorada.

Em tempo: Ao menos 14 pessoas foram mortas, também nesta sexta (8), durante operação do Batalhão de Operações Especiais (Bope) e do Batalhão de Choque na comunidade do Fallet-Fogueteiro, no Rio. A ação começou com confrontos entre quadrilhas que dominam três comunidades. Policiais afirmam que foram recebidos a tiros e revidaram. Mas moradores contaram à imprensa que policiais mataram pessoas que não tinham relação com o crime organizado e executaram suspeitos mesmo após sua rendição.

As batalhas do tráfico sempre aconteceram longe dos olhos da classe alta, uma vez que a imensa maioria dos corpos contabilizados sempre é de jovens negros e pobres, que se matam na conquista de territórios para venda de drogas, pelas leis do tráfico e pelas mãos da polícia e das milícias. Considerando que policiais, comunidade e traficantes são de uma mesma origem social e, não raro, da mesma cor de pele, tende a ser visto como uma batalha interna. Mortos pelos quais pouca gente fora das periferias irá prantear.

Há uma outra tragédia em curso nas comunidades pobres do Rio e em outras periferias espalhadas pelo país, um conflito armado organizado que não temos sido capazes de debelar. Um conflito que, historicamente, o Estado tem tentado resolver com mais violência, sem resultado, produzindo "danos colaterais". Mas como ocorre a conta-gotas, diariamente, já naturalizamos. Tanto que conta com até com torcida organizada nas redes sociais.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.