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Leonardo Sakamoto

Incluir idosos pobres e rurais na reforma indica governo masoquista

Leonardo Sakamoto

26/02/2019 04h05

Foto: Reuters

Fiz uma humilde sugestão quando o Brasil estava grávido do novo governo e de sua equipe econômica, em 26 de dezembro do ano passado, através do post intitulado "Bolsonaro deveria excluir rurais e muito pobres da Reforma da Previdência". Não foi a primeira vez que tratei disso, a bem da verdade, tendo escrito coisa semelhante para Michel Temer.

Isso não é mérito algum porque não fui o único. Outros também atentaram que, independentemente do rumo que a reforma tomasse, determinadas categorias de trabalhadores deveriam ser protegidas a qualquer custo: as dos mais pobres e vulneráveis, principalmente. Afinal, se o mote da Proposta de Emenda Constitucional seria dar uma paulada nos privilégios, não fazia sentido algum optar por descer o sarrafo em quem nada tem.

Para quem estava em uma caverna sem Wi-Fi, a centenas de quilômetros de um lugar habitado, e pegou agora o bonde andando, o governo federal sugeriu aumentar de 65 para 70 anos a idade em que idosos em condição de miserabilidade (menos de R$ 249,50 de renda familiar mensal per capita) poderão ter acesso ao benefício assistencial de um salário mínimo mensal. Como compensação, ofereceu um biscoito de R$ 400,00/mês dos 60 aos 69. Não comentou, claro, que é mais fácil conseguir um bico para complementar a renda aos 60 do que aos 69 – sem contar que a demanda por recursos para custos de saúde e emergências aumenta exponencialmente nessa idade.

Justifica-se que, se a idade para o benefício for a mesma da aposentadoria (65, para homens), os trabalhadores não terão incentivo para contribuir com a Previdência. Com isso, o poder público insinua que milhões são pobres e passam necessidade como estratégia para receberem o benefício quando ficarem mais velhos.

Ao mesmo tempo, o governo propôs equiparar a idade mínima para aposentadoria das mulheres trabalhadoras rurais à dos homens, subindo de 55 para 60 anos. Os trabalhadores da economia familiar (pequenos produtores, coletoras de babaçu, seringueiros, pescadores artesanais, entre outros), que antes precisavam apenas comprovar 15 anos de trabalho passariam a ter que contribuir durante 15 anos. Seja com o recolhimento de imposto no momento da venda da produção ou, se o valor mínimo não for alcançado, com o pagamento de R$ 600,00 anuais. A proposta ignora que o produtor, às vezes, termina o ano sem renda líquida, por fatores climáticos ou de preço no mercado.

Sem contar os assalariados rurais que, após 2020, já teriam que contribuir por 15 anos – o que já era difícil dado a taxa de informalidade no campo que ultrapassa os 55% – e, com a reforma, terão que contribuir por 20 anos. Não é trabalhar por 20 anos, é contribuir por 240 meses. Ou seja, vai ter gente no campo que cairá invariavelmente no colo do Benefício de Prestação Continuada (BPS), a supracitada assistência para idosos muito pobres.

Uma das teses defendidas é de que o governo federal incluiu esses grupos para usar como "moeda de troca", "gordura para queimar" e "bode na sala" quando o texto começar a ser analisado pela comissões no Congresso Nacional. Pode até ser. Mas, nesse caso, determinados políticos, economistas e formadores de opinião merecem o Oscar de melhor ator e atriz coadjuvantes. Porque defendem tanto e tão profundamente essas medidas que ou são gênios da interpretação ou realmente acreditam que limar benefícios assistenciais de gente pobre e miserável é a saída para o nosso buraco fiscal.

Melhor teria feito o governo em não incluir esses pontos na proposta. A economia na Reforma da Previdência seria menor? Sim. Em compensação, não haveria, neste momento, milhões de brasileiros pobres apreensivos com seu futuro, maldizendo seus representantes políticos pela tal da Reforma da Previdência. Conversei com lideranças de organizações da sociedade civil no interior do Maranhão e do Piauí e essas pancadas da reforma correram que nem rastilho de pólvora entre a população. Mesmo que, agora, o ministro da Economia Paulo Guedes retire esses pontos da discussão, a perda em imagem pública do pacote, por conta da navalhada na aposentadoria rural e no BPC, já deixou cicatrizes.

Se o governo, por outro lado, achar que tudo se resolve com envio de milhões de WhatsApp, tal como na eleição presidencial, vai se surpreender. O povão vê como obrigação do governo cortes nas aposentadorias de políticos e de servidores públicos que ganham muito. Mas como sacanagem o corte em assistência social aos pobres. A primeira coisa não compensa a segunda e a segunda coisa pode ter justificativa econômica, mas não passa no crime da maldade.

Eu, que não creio, gosto do livro bíblico de Eclesiastes. Logo em seu início, no capítulo 1, versículo 2, ele sintetiza um dos grandes problemas de alguns planejadores: "Vaidade de vaidades, diz o pregador, vaidade de vaidades! Tudo é vaidade". A certeza de acreditar que seu modelo matemático, abastecido por planilhas com milhares de colunas e linhas de informação, faz tanto sentido que a sociedade não deveria ousar questioná-lo, mas adotá-lo como o caminho, a verdade e a vida, é a arrogância vestida de insensibilidade.

Numericamente, a conta pode estar certa. Mas a partir do momento em que a dignidade se resume apenas a um campo de planilha é que a sociedade deu chabú.

Essa arrogância sentencia, aqui e ali, que não há mais espaço para mudanças e que cabe ao povo acatar ou ser responsável pela quebra do país. Não se vê tantas ameaças virulentas para os que, do andar de cima, receberam polpudos subsídios ou isenções ou ainda não pagam imposto sobre dividendos desde 1995.

A Reforma da Previdência não passa do jeito em que está, aloprando quem menos tem, e isso é favas contadas. Ou seja, vai ter espaço sim para mudanças e teremos que resolver o custo disso de maneira diferente.

A questão é outra: quem é o estrategista do governo Bolsonaro? Porque ele é péssimo.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.