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Leonardo Sakamoto

Como o governo pretende tirar 4,7 milhões de trabalhadores do desalento?

Leonardo Sakamoto

27/02/2019 11h12

Foto: Mauro Pimentel/AFP

Um dos números mais angustiantes divulgados periodicamente pelo IBGE é o do desalento. Esses contingente está fora da força de trabalho por não acreditar que exista oportunidade ou espaço no mercado, não contar com experiência ou qualificação, ser considerado muito jovem ou muito idoso, não encontrar serviço no local de residência ou não ter conseguido trabalho adequado.

De acordo com dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) Contínua, sobre o trimestre encerrado em janeiro, o número de pessoas desalentadas foi de 4,7 milhões. O número é estável em relação ao trimestre entre agosto e outubro de 2018, mas 6,7% maior em comparação ao mesmo trimestre um ano atrás, quando essa população era de 4,4 milhões. O percentual das pessoas em desalento ficou em 4,3%, o mesmo que no semestre anterior, mas cresceu em relação ao ano passado (4,1%). 

A manutenção da população que desistiu de procurar emprego porque acreditam que não vão encontrar algo é um dos piores indicadores para um país. Isso vai além de desemprego, é o resultado da corrosão não só da autoestima e da fé na vida em sociedade, as também da esperança e da confiança na economia, na política, no governo e nas instituições. E a depender do nível dessa corrosão, a reconstrução não apenas é lenta, mas pode minar a já frágil e desorientada democracia.

A Bolsa de Valores sobe e caminha para os 100 mil pontos. Enquanto isso, a população desocupada (que cresceu 2,6% frente ao trimestre anterior) chega a 12,7 milhões. E os que gostariam de trabalhar mais, a população subutilizada, totaliza 27,5 milhões. A taxa composta de subutilização da força de trabalho (pessoas desocupadas, subocupadas por insuficiência de horas trabalhadas e a força de trabalho potencial) foi de 24,3%. No trimestre anterior, era 24,1% e um ano antes, 23,9%.

Claro que não se espera que o governo Jair Bolsonaro produza efeitos nesse campo em apenas dois meses ou que a economia reaja de bate e pronto. Mas o otimismo de investidores e empresários não contagiou parte dos trabalhadores, que precisam ver números e projeções traduzidos para a vida real. Ou pelo menos um projeto consistente do poder público apontando para a geração de empregos. Pois já vivenciaram momentos de desconexão entre a realidade das planilhas e da gôndola dos supermercados.

O desalento da falta de emprego está relacionado ao desalento da política. Parte da população – aturdida com o desemprego arrasador e com as quase 64 mil mortes violentas por ano, somado às denúncias de desvios de recursos públicos – que permearam os últimos governos do PSDB, PT e MDB, mas que já envolveu o PSL do atual presidente da República – e a promessas vazias de parte das elites política e econômica, de que correria leite e mel após o impeachment e a Reforma Trabalhista – deixa de acreditar na coletividade e busca construir sua vida tirando o poder público da equação.

Cada um por si e Deus por todos. O problema é que isso deixa o Estado livre para continuar servindo aos interesses de poucos. Caídas em descrença, instituições levam décadas para se reerguer – quando conseguem. No meio desse vácuo, seres que se consideram acima das leis se apresentam como a saída para os nossos problemas, empacotando como promessa de mudança a mesma velha cantilena de retirada de direitos trabalhistas, em contrapartida de dignidade aos trabalhadores. Sim, o desalento continuado em uma democracia ajuda ela a caminhar em direção ao seu próprio fim.

Reduzir as taxas de desocupação, de preferência com a geração de vagas formais, com carteira assinada, deveria ser a prioridade desde o primeiro dia de trabalho do novo governo – tendo esses 4,7 milhões de desalentados como termômetro de sucesso. Mas, ao que tudo indica, há outras prioridades. Como fustigar um conflito com a Venezuela, gravar vídeos de crianças nas escolas, aumentar a impunidade diante da letalidade policial, dificultar o acesso de idosos muito pobres ao salário mínimo de assistência, defender um muro separando os Estados Unidos da América Latina, cutucar jornalista nas redes sociais…

Post atualizado às 16h50 do dia 27/03/2019 para atualização da força de trabalho subutilizada.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.