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Leonardo Sakamoto

"Golden shower" serviu agenda medieval ou quis disfarçar governo sem rumo?

Leonardo Sakamoto

07/03/2019 02h20

Foto: Ueslei Marcelino/Reuters

Por trás de toda polêmica levantada pelos tuítes presidenciais que se tornaram chacota em escala global, há uma discussão de fundo: Bolsonaro bombou o "golden shower" para cumprir sua agenda medieval em costumes e direitos ou desejava encobrir algo? No caso da segunda hipótese, seu objetivo seria lançar fumaça sobre alguma medida impopular que vem sendo tomada por seu governo ou esconder que seu governo carece de medidas, mesmo impopulares? Isso, claro, considerando favas contadas a clara intenção de manter as fileiras bolsonaristas em estado eleitoral de excitação.

A ala ultraconservadora de seu eleitorado votou com a esperança que ele colocasse em prática uma de suas promessas, de outubro, durante a campanha: fazer "o Brasil semelhante àquele que tínhamos há 40, 50 anos atrás". Alerta de spoiler: vivíamos uma ditadura militar. Se dependesse dele, creio que se dedicaria apenas a isso porque, inegavelmente, é o que sabe fazer de melhor.

Nesse sentido, é papel de Bolsonaro e de seus ministros da ala estridente convencerem a opinião pública que as eleições lhes deram mandato para liberá-la a sociedade do "marxismo", do "globalismo", do "gayzismo", do "coitadismo", do "abortismo", do "mimimismo" e qualquer outra fantasia que viralize nas redes sociais a partir de sua ilimitada criatividade.

Liberar a sociedade de algo que não existe é igual a tentar aterrorizar uma população para os riscos do Homem do Saco ou da Mulher de Branco. Ou equivalente a um presidente da República mentir nas redes sociais, dizendo que o Carnaval está se transformando em uma horda de foliões programados para urinar na cabeça de "cidadãos de bem", jogando a população contra grupos LGBTT. 

Por outro lado, fomentar um estado de apreensão constante é fundamental para que a base do bolsonarismo, que esteve com o presidente desde que ele perdeu a guelras e saiu da água, mantenha-se coesa e orientada a ficar firme nas guerras cultural e política. Ou seja, que lute contra Moinhos de Vento enquanto Dom Quixote aumenta em 16% os gastos com o cartão corporativo na Presidência da República.

Mas é papel de todos que não estiveram presos em uma caverna sem acesso a wi-fi durante as eleições lembrar que uma parte significativa dos eleitores não é ultraconservadora e não vê sentido nos surtos presidenciais. A vontade de renovação para resolver as quase 64 mil mortes violentas por ano, os 12,7 milhões de desempregados e a corrupção como instrumento de governo foi a razão principal do voto no eleito e não a implantação de uma sharia cristã no país.

E o que Bolsonaro vem fazendo para atender a essa expectativa fora da área de costumes e comportamento? Nada visível a olho nu.

Daí vem a segunda parte da história. Até agora, não foram anunciados planos para redução da violência urbana e rural – o que incluiria combater as mortes de jovens negros, indígenas e trabalhadores rurais. Se não sabe do que estou falando, tem desfile da campeã Mangueira neste sábado. Ouça o samba com atenção. Veja as alegorias. Reflita sobre os estandartes com o rosto de Marielle Franco.

Muito menos políticas para a geração de postos de trabalho formais – pelo contrário, uma das únicas propostas anunciadas sobre o tema foi um balão de ensaio sobre a viabilidade da carteira de trabalho "verde e amarela", que não precisaria seguir as proteções à saúde e segurança previstas na CLT para os jovens que estão começando no mercado. Ou seja, "Reforma Trabalhista 2 – A Missão". Mas, desta vez, disfarçada de bandeirinha do Brasil.

E no quesito "corrupção", o governo nem bem começou e já perdeu um ministro envolvido no cultivo de laranjais (Gustavo Bebianno) e conta com outro na berlinda (Marcelo Álvaro Antônio), sendo que o filho mais velho do presidente, hoje um senador da República, é acusado de produzir cítricos com a ajuda de um ex-assessor e de ter, ele próprio, relações com milicianos. Sem contar a mal explicada "devolução de empréstimo", no valor de R$ 24 mil, na conta da esposa do presidente feita por Fabrício Queiroz.

Além da falta de ações que coloquem em prática promessas de campanha que interessam a maioria da população, o governo tem demonstrado toda sua inabilidade política na relação com o Congresso Nacional; causado arrepios com seu comportamento de elefante em sala de cristais nas relações exteriores; gerado indignação pelas repetidas bobagens feitas pelo ministro da Educação, como a demanda pela gravação de crianças nas escolas, sem a autorização dos pais, e a leitura do slogan de campanha do presidente; permitido o aumento do desmatamento na Amazônia, enquanto o ministro do Meio Ambiente reclama de Chico Mendes e fala do nazismo para criticar jornal alemão.

Paulo Guedes e Sérgio Moro, ministros fiadores do governo diante do poder econômico e de setores da opinião pública, começaram a colocar seus blocos na rua com a Reforma da Previdência e a proposta de alterações legislativas contra o crime organizado e a corrupção. São projetos importantes e que devem ser debatidos pela sociedade, mas que começaram mal: prometeram atacar apenas os privilegiados e chegaram com pé no peito dos mais vulneráveis.

A proposta da Reforma da Previdência prevê que idosos abaixo da linha da pobreza só possam receber um salário mínimo de assistência aos 70 e não mais aos 65 anos – em troca concede 400 mangos entre os 60 e os 69 anos. Também quer trabalhadores rurais da agricultura familiar, catadores de babaçu, pescadores artesanais pagando contribuições por 20 anos, quando, em muitas safras, eles não produzem o suficiente nem para se manter. Sem falar na possibilidade de viúvas e órfãos receberem menos de um salário mínimo de pensão.

Da mesma forma, qualquer política de combate ao crime digna deveria ser pensada visando, em primeiro lugar, à proteção da vida dos mais vulneráveis. Mas entre as apresentadas no pacote de Moro, o item sobre o excludente de ilicitude e a legítima defesa relaxa a punição a agentes de segurança que "em conflito armado ou em risco iminente de conflito armado, previne injusta e iminente agressão a direito seu ou de outrem". Com isso, a medida coloca em risco a vida de moradores inocentes e facilita a execução sumária, sem reduzir a criminalidade.

No final das contas, acredito que as três opções podem estar corretas. Todas de uma vez, simultaneamente. Ou seja, Bolsonaro alegrou uma parte dos eleitores radicais, renovando as promessas de apoio. Mas também jogou fumaça naquilo que é impopular em seu governo, disfarçando a letargia em outras áreas importantes. Levando ao êxtase o grupo de seus eleitores incapazes de sentir empatia pelo outro. Tendo em vista que tudo isso está por trás de um videozinho mequetrefe, ficarei especialmente preocupado com a saúde da República se o presidente postar um vídeo de sexo grupal.

Em tempo: brigar com o Carnaval e achar que pode vencer demanda uma autoestima muito grande. Como diria Eclesiastes capítulo 1, versículo 2 – "Vaidade de vaidades, diz o pregador, vaidade de vaidades! Tudo é vaidade". 

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.