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Leonardo Sakamoto

Se vira com dois busões: SP reduz mobilidade de trabalhadores da periferia

Leonardo Sakamoto

07/03/2019 11h42

Foto: Marcos Bezerra/Futura Press/Folhapress

Prefeitos deveriam ser obrigados a morar longe e andar de ônibus. Isso forçaria gestores a pensarem com a cabeça de quem precisa usar serviços de transporte público e não com cabeça de planilha.

A Prefeitura de São Paulo alterou as regras para o uso do vale-transporte no bilhete único, reduzindo de quatro para duas o número de viagens que o trabalhador poderá fazer com uma mesma passagem. Em contrapartida, aumentou de duas para três horas o período em que isso pode acontecer. A justificativa é de que o vale-transporte é subsidiado por toda a população e, agora, as empresas terão que depositar um valor maior para cada empregado.

Considerando que a administração municipal pretende reduzir o número de linhas de ônibus e encurtar os trajetos deles na capital paulista, prevê-se um aumento no número de baldeações. Quem mora longe, ou seja, os trabalhadores mais pobres, já têm que pegar três, quatro conduções. As alterações na malha de transporte coletivo somadas às do vale-transporte vão atingir exatamente quem mais precisa.

A menos que o governo federal esteja retalhando a legislação trabalhista enquanto escrevo este texto, há um limite de 6% de desconto do salário para vale-transporte. Quem precisa pegar mais de dois ônibus terá que contar com um depósito extra feito pelo empregador. Daí reside o problema. O que vai impedir empresas de preferirem contratar pessoas que moram mais perto para economizar? Por que a Prefeitura, antes de anunciar a mudança, não criou mecanismos para evitar que a mobilidade urbana de, pelo menos, 120 mil pessoas seja reduzida?

Não só a mobilidade como também a qualidade de vida. Passei o ensino médio gastando duas horas para ir da escola, que fica no bairro do Pari, até o Campo Limpo, onde cresci. Em boa parte das vezes, o trajeto era feito em pé, em um coletivo lotado. Quando avistava um ônibus mais vazio, o jeito era lamentar porque não era possível trocar de condução.

Quando a Prefeitura implantou o bilhete único, confesso que cheguei a invejar um pouquinho a geração de estudantes. Não porque a via-crúcis diária deles e dos trabalhadores tenha ficado no passado, e sim porque usuários de transporte coletivo poderiam pelo menos achar meios de driblar situações aberrantes de desconforto ou demora. Afinal, com esse programa, o usuário poderia trocar de condução quantas vezes quisesse dentro de um determinado período, inclusive escolhendo os serviços de transporte coletivo que considerassem mais adequados – sem ter que pagar a mais por isso.

Agora, a medida anunciada pela prefeitura condena trabalhadores a usar menos linhas e menos ônibus. Aqueles que antes podiam descer e subir em outro mais vazio para chegar mais disposto ao serviço ou em casa. Se você acha que isso é detalhe, é porque não deve saber nem o preço da passagem atualmente.

"A principal queixa de quem usa ônibus no dia a dia é a superlotação dos veículos, e problemas que decorrem dela", afirma Thiago Guimarães, pesquisador no Instituto para os Estudos de Transportes da Universidade de Leeds, no Reino Unido, especialista em política de transportes para as necessidades de mobilidade das populações mais vulneráveis.

"Porque há pouco ônibus para muita gente, é longa a espera nas paradas e não se sabe direito quando se consegue entrar em um deles – em certos momentos do dia, eles passam, um atrás do outro, lotados. Dentro dos veículos, o desconforto é alto." Desequipados de transporte sobre trilhos, bairros distantes são em grande parte dependentes desses ônibus para deslocamentos de maior distância.

É estranho que a mesma Prefeitura que não tem poupado esforços nos últimos anos em cortar linhas de ônibus, diminuindo seus trajetos – o que implica necessariamente um maior número de baldeações principalmente para quem mora em áreas mais distantes – agora anuncia a redução do número máximo de embarques em coletivos. Em nome de uma "racionalidade técnica" da organização do transporte público em uma metrópole complexa como São Paulo, é bastante possível que quem saia perdendo são as pessoas que mais usam e entendem de ônibus na cidade: os trabalhadores. Muitos terão que andar a pé para complementar o que o Estado não lhe garantiu.

Racionalidade técnica significaria garantir aos usuários mais de uma rota para sair de um ponto A para um ponto B, em uma grande rede de transporte público. Agora, essa lógica está sendo perdida.

Não se nega a necessidade de buscar formas de otimizar e baratear o sistema. A questão aqui é implementar uma mudança em que o ônus não caia, na prática, nas costas desses trabalhadores. O poder público deveria ajudar o elo fraco dessa corrente no processo e não deixá-lo só. Gastos com mobilidade urbana não podem ser computados como prejuízo, mas como efetivação de um direito. Não é possível, portanto, descartar subsídios para garanti-lo.

Mas num país em que o governo federal propõe que um jovem pobre, desesperado pelo primeiro emprego, negocie sozinho com uma empresa, possível futura empregadora, se o seu contrato de trabalho será ou não regido pela CLT, a mudança do vale-transporte faz todo sentido. Os proponentes dessas mudanças dizem que isso levará o país a um futuro melhor, mais racional. Mas não se cobre um santo descobrindo outro, ou seja, não se garante economia para os cofres públicos ou privados em cima da qualidade de vida da população mais pobre. Medidas como essas pavimentam uma estrada em direção a um futuro sim, mas distópico. É o país do cada um por si, Deus por todos e o Estado batendo palma para o caos.

 

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.