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Leonardo Sakamoto

Governo barganha com idoso pobre ao invés de propor expansão real do BPC

Leonardo Sakamoto

09/03/2019 03h56

O governo federal tem se desdobrado para tentar convencer a sociedade de que a Reforma da Previdência não cria um problema para idosos em situação de miserabilidade ao postergar de 65 para 70 anos a idade mínima para acesso ao benefício de um salário mínimo mensal (R$ 998,00).

Pela proposta, eles passariam a receber uma fração desse valor dos 60 aos 69 (no caso, R$ 400,00). O governo Bolsonaro repete, à exaustão em eventos e entrevistas, que o objetivo principal dessa mudança é garantir qualidade de vida a esse grupo social, antecipando parte do pagamento. E diz que eles vão preferir isso ao benefício do Bolsa Família, de menor valor. Uma barganha que pode fazer sentido aos 60, mas que embute uma bomba-relógio que estoura mais para frente, quando mais precisarão de apoio do Estado.

A Reforma da Previdência propôs uma "troca" com os idosos em condição de miserabilidade: antecipa 40% mensais do que a pessoa receberia por cinco anos (considerando o valor atual do salário mínimo) e extrai 60% do que ela poderia ganhar nos cinco anos seguintes. 

Mesmo que se ignore que há um prejuízo ao idoso nessa barganha, o problema é que o corpo humano não se mantém com a mesma vitalidade e integridade ao longo desse período da vida. É mais fácil a um trabalhador pobre conseguir bicos e suportar um serviço dos 60 aos 65, para complementar um benefício de R$ 400,00, do que dos 65 aos 70, abrindo mão de um salário mínimo integral. Sem contar que o custo de vida vai subindo, com a deterioração da saúde, por exemplo. É, portanto, uma troca injusta.

Já que o marketing da Reforma vem sendo construído em cima da ideia de que ela ataca privilégios dos mais ricos e dá proteção aos mais pobres (apesar do problema trazido pela mudança no BPC e pelo endurecimento do acesso à aposentadoria dos trabalhadores rurais, entre outros), o governo poderia acrescentar proteção social ao invés de descobrir um santo para cobrir outro.

Reconhece-se que a proposta de mudança do Benefício de Prestação Continuada (BPC) tem um lado péssimo (postergar o acesso ao salário mínimo) e um lado bom (iniciar o pagamento de benefícios aos 60 anos).

O governo, portanto, poderia mudar sua proposta: liberar os tais R$ 400,00 ou uma fração deles para quem tem de 60 a 64 anos e renda per capita familiar de menos de um quarto do salário mínimo (R$ 249,50) e manter a concessão do benefício de um salário mínimo dos 65 anos em diante, como é hoje.

Se resolvesse alterar esse ponto, estendendo benefício sem cortar o que já funciona hoje, Bolsonaro passaria para a história como alguém que ajudou a aumentar a proteção a um grupo de pessoas que camelou ao longo da vida, mas devido às altas taxas de informalidade e de desemprego, não conseguiu cumprir o tempo de carência (180 contribuições, hoje, 240, com a Reforma) junto ao INSS. E, com isso, caiu no caixa da assistência social.

Isso soa como delírio fiscal? Talvez. Mas nem precisaria ser os R$ 400,00 propostos. O pagamento de valores escalonados para idosos muito pobres entre os 60 e os 64 é algo que poderia ser seriamente discutido por deputados federais e senadores durante o trâmite da Reforma nos próximos meses no Congresso Nacional, buscando fontes de recursos para tanto. E se não houver consenso, mantém-se tudo como está, com o salário mínimo a partir dos 65.

Essa tese tem um apoiador de peso: o próprio governo Bolsonaro, cujos representantes vêm fazendo uma defesa apaixonada pela antecipação do benefício, justificando-se, como citei acima, pela qualidade de vida dos mais pobres.

A menos que o discurso de proteção dos trabalhadores seja apenas estratégia política, claro. Afinal de contas, uma massa de trabalhadores pobres, mas não tão pobres, que atuam na informalidade, terá mais dificuldades para se aposentar por conta da proposta da Reforma de aumento de 15 para 20 anos para contribuição mínima. Com isso, espera-se uma demanda maior do BPC por parte de brasileiros que não conseguirão a aposentadoria e adentrarão a extrema pobreza. O que pode ser um dos motivos que levou o governo a querer estreitar o acesso ao benefício de um salário mínimo.

O presidente da República tem apelado ao "espírito patriótico" dos parlamentares para a aprovação da Reforma da Previdência. O que não se atenta é que essa retórica pode ser útil para buscar a aprovação de um aumento da alíquota de contribuição previdenciária de categorias com altos salários, mas não para criar problemas para idosos que vivem na miséria. Que são muitos e costumam votar nas eleições. Desconfio que, nesse caso, patriotismo seja fazer exatamente o contrário da proposta presidencial.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.