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Leonardo Sakamoto

Bolsonaro precisa deixar claro que, para a Presidência, miliciano é bandido

Leonardo Sakamoto

13/03/2019 04h18

Foram encontradas 117 fuzis na casa de um amigo do PM reformado Ronnie Lessa, acusado de ser executor de Marielle Franco e Anderson Gomes. Foto: Polícia Civil/RJ

O governo Jair Bolsonaro vai acabar sendo acusado de cúmplice de milícias.

E a razão não é a defesa apaixonada que o presidente, quando deputado federal, fazia desses grupos de bandidos oriundos das forças de segurança sob a justificativa de garantirem a ordem. Tampouco as homenagens prestadas a milicianos assassinos por seu filho 01, o senador Flávio Bolsonaro, quando este era deputado estadual. Nem a contratação para o gabinete deste, na Assembleia Legislativa do Rio, da mãe e da esposa do chefe de uma temida milícia. Ou a coincidência de sua casa ficar a poucos passos da residência do executor de Marielle Franco e a coincidência maior ainda de seu filho 04 ter, segundo a polícia, namorado a filha do miliciano – que também pode estar envolvido na maior apreensão de fuzis da história do Rio.

A cumplicidade se deverá ao fato do presidente da República parecer fazer de conta que essas organizações não são um problema real, quando elas já controlam um território maior que o do tráfico de drogas no Rio de Janeiro e atuam por todo o país.

A informação sobre a extensão desse poder vem do deputado federal Marcelo Freixo (PSOL-RJ). Ele defendeu, nesta terça (12), a criação de uma CPI das Milícias na Câmara dos Deputados para identificar como elas interferem na política. Isso acontece na esteira da prisão do policial militar reformado Ronnie Lessa e o ex-PM Élcio Queiroz, acusados da morte da vereadora Marielle Franco e do motorista Anderson Gomes.

A despeito da pífia citação das milícias no pacote legislativo contra o crime organizado e a corrupção, encaminhado pelo ministro da Justiça e Segurança Pública, Sérgio Moro, ao Congresso Nacional, sugerindo inclui-las no rol de organizações criminosas, não há um plano para lidar com esses grupos – cujas relações e tentáculos infestam o Estado.

O problema é que, ao contrário do que ocorre com uma facção criminosa, uma milícia raramente vai para a porrada aberta com a polícia por razões óbvias. Não se combate milícia com ocupação de território e grandes operações policiais. O enfrentamento, portanto, envolve retirar seu poder econômico, o que inclui o uso intensivo de serviços de inteligência integrados, que possam identificar quem das forças de segurança está dentro dessas organizações.

Prova de como precisamos dessa integração é a imagem com 117 novos fuzis encontrados na periferia da capital carioca que teriam relação com o acusado de matar Marielle. Como chegaram ao Rio, ninguém sabe, ninguém viu.

Milícia e tráfico já vivem uma simbiose de métodos e territórios, tanto que – não raro – é difícil diferenciá-los. Mas tudo é tão escrachado e visível que vemos apoiadores de milicianos aparecerem nas redes sociais e na política, chamando esses bandidos de heróis e pedindo a morte dos outros bandidos, os traficantes. O escracho é tão grande que se defende os métodos aplicados pelas milícias, de tortura e morte, de qualquer pessoa que seja contra a ocupação mafiosa dos bairros pobres. Ocupação que usa a torpe justificativa de estar garantindo "segurança" contra os criminosos quando são eles próprios representantes do crime.

Não à toa a milícia está onde o Estado não está presente na garantia de direitos fundamentais e de fiscalização, ela ocupa esse vácuo. O debate de segurança pública passa, portanto, por discutir para quem a cidade vai funcionar, com quem a cidade vai funcionar e pela radicalização de um processo de democracia. Chamando as próprias comunidades a participar das decisões sobre seu futuro e não impondo soluções de cima para baixo que não geram mudanças no longo prazo.

Com uma política corrupta no Rio de Janeiro seria estranho se parte da estrutura de policiamento também não fosse. Diante de indagações de como reduzir essa corrupção e atacar milícias formadas por policiais e militares, além de proteger os agentes de segurança honestos, garantindo sua integridade física e a de suas famílias, muitos políticos calam-se, mostrando que falta vontade, conhecimento e coragem. Ou sobra rabo preso.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.