Topo

Leonardo Sakamoto

Se quiser mesmo censurar Enem, governo terá que garantir que exame ocorra

Leonardo Sakamoto

02/04/2019 00h59

A gráfica que imprime o Enem, desde 2009, anunciou falência. Isso já seria um problema desgraçadamente grande se o Ministério da Educação fosse gerido por uma equipe racional. Mas, transformado na Casa da Mãe Joana, com pessoas que não ficam no cargo o suficiente para esquentar a cadeira, sem planejamento, comando ou autocrítica e tendo sido loteado para pupilos de um polemista narcisista de extrema direita, o MEC terá que suar a camisa para resolver o problema a tempo.

Vale lembrar que, para Jair Bolsonaro, o maior problema da prova do Enem eram questões com o que ele chama de "ideologia de gênero". Em novembro do ano passado, indignado com uma das perguntas do exame que tratava de dialetos de minorias, prometeu que iria vistoriá-las antes para retirar conteúdo. Em suma, censura. "Podem ter certeza e ficar tranquilos. Não vai ter questão desta forma ano que vem, porque nós vamos tomar conhecimento da prova antes. Não vai ter isso daí." No dia 20 de março, o Inep (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais) nomeou uma comissão para fazer a triagem ideológica das questões do Enem 2019

A notícia encontra um MEC perdidão nas mãos do ministro Ricardo Vélez Rodríguez, que deveria ter sido substituído, há tempos, devido ao seu desconhecimento de gestão educacional, política pública e realidade. Mas, como todos sabemos que o problema da Educação no Brasil é a doutrinação comunista-gayzista-globalista-político-partidária-anti-família, coisa que vem sendo combatida ferozmente pelos tuítes do presidente e do ministro, não há com o que se preocupar.

Ao invés de indicar alguém à altura do desafio de formar cidadãos e profissionais, Bolsonaro atendeu a pressões de grupos fundamentalistas e descartou profissionais qualificados por questões religiosas. Queria alguém que pudesse levar às escolas sua cruzada em nome da tradição, da família e da propriedade. Que entendesse, segundo ele, que o país é "conservador".

Uma inversão inconsequente de prioridades. Apesar do Brasil contar com uma formação precária dos docentes e com alunos que saem do Ensino Médio analfabetos funcionais; assistir ao roubo, à ausência e à baixa qualidade da merenda escolar; pagar baixos salários aos professores e não fornecer estrutura suficiente em todas as escolas – metade não tem esgoto; manter um teto orçamentário, aprovado no governo passado, que restringe novos investimentos em uma área que ainda está distante de um mínimo aceitável, o enfoque, até agora, é na mamadeira de piroca, em gravar crianças cantando hino nacional e na necessidade de recolher cartilhas que ensinam jovens a cuidar da saúde do próprio corpo, pois, horror dos horrores, têm ilustrações de pipius e xaninhas.

Uma lição que o presidente ainda não aprendeu é que governar o Brasil não é dirigir um conversível esportivo, em um dia ensolarado, por uma estrada vazia e reta, sem buracos, nem obstáculos, com o canto de pássaros, um tanque cheio e o aplauso dos pedestres. É um rali, em um lamaçal, em fúria de tempestade, com árvores e pedras caindo a todo o instante, sob o risco de derrapar para um desfiladeiro, em um Fiat 147 lotado e cheio de goteiras, com mosquitos por todos os lados, ouvindo vaias da torcida e o tanque eternamente na reserva. O Brasil precisa de um ministério que seja capaz de conduzir a Educação sob qualquer circunstância e não largá-la no meio do caminho para caçar fantasmas e combater moinhos de vento.

Esperemos, para o bem dos jovens que se preparam para o Enem a fim de pleitear vagas em universidades públicas, que o governo seja tão competente em solucionar problemas de gestão quanto é em criar estruturas para censurar.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.