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Leonardo Sakamoto

Os governantes que elogiam execuções vão pedir perdão à viúva de Evaldo?

Leonardo Sakamoto

08/04/2019 17h16

Foto: José Lucena/ Futura Press/Estadão Conteúdo

O músico Evaldo Rosa dos Santos foi executado por militares do Exército diante de sua família após o carro em que estavam ser alvo de mais de 80 tiros, em Guadalupe, Zona Norte do Rio de Janeiro, neste domingo (7). Sua esposa, seu filho de sete anos, uma afilhada, de 13, e seu sogro assistiram à sua morte. Todos iam a um chá de bebê.

Se você deduziu qual a cor da pele de Evaldo sem que alguém precisasse dar dicas, parabéns. Você conhece bem o seu país.

"Estávamos cantando e escutamos um estilhaço. O sangue espirrou em mim. Meu filho não sabe e está perguntando do pai", disse a viúva Luciana Oliveira a Diego Garcia, da Folha de S.Paulo. Segundo ela, os militares ainda debocharam da família após a morte.

O delegado Leonardo Salgado, responsável pela investigação, afirma que os militares teriam confundido o carro de Evaldo com o de bandidos. "Mas neste veículo estava uma família. Não foi encontrada nenhuma arma", disse Salgado, em registro de Marcela Lemos, para o UOL.

Mesmo que fossem criminosos, a execução não deveria ser a forma através da qual persegue-se a Justiça.

A política informal de execução de pobres e negros nas periferias não é uma novidade no Rio de Janeiro. Eles têm sido abatidos cotidianamente pelas mãos do tráfico, de milicianos, de policiais e militares. O diferencial agora é a tempestade perfeita criada por um governador e um presidente da República que elogiam execuções cometidas por agentes de Estado.

Não, não é a mão de mandatários como Wilson Witzel e Jair Bolsonaro que seguram o revólver, a espingarda ou o fuzil. Mas é a sobreposição dos discursos de ambos, promovendo, premiando e justificando mortes pelas mãos do poder público que tornam o ato banal e justificável. Nesse ponto de vista, mortes como a de Evaldo são "danos colaterais" aceitáveis no caminho de um Estado seguro. O problema é que um Estado que mata indiscriminadamente não é seguro, mas autoritário e ditatorial. Nele, qualquer um com a cor de pele e a classe social "erradas" podem se tornar suas vítimas.

Esses "danos" se repetem aos milhares, todos os anos. Entre 2006 e 2016, homicídios de negros aumentaram 23,1% e, do restante da população, reduziram 6,8%. Em 2016, a taxa de homicídios de negros foi de 40,2 mortes para cada 100 mil habitantes, enquanto os demais grupos registraram 16 mortes para cada 100 mil. Em outras palavras, 71,5% dos assassinados foram negros. No mesmo ano, de acordo com o IBGE, a população negra (pretos e pardos) somava 54,9% dos brasileiros. As informações são do Atlas da Violência 2018, divulgado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) em parceria com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, sobre dados do Ministério da Saúde.

Em julho de 2017, reportagem do UOL apontou que nove entre cada dez pessoas mortas pela polícia no Estado do Rio de Janeiro eram negras. O dado foi obtido através da Lei de Acesso à Informação. Organizadas com base em boletins de ocorrência da Polícia Civil, as informações mostraram que, ao menos, 1227 pessoas foram mortas pela força policial entre janeiro de 2016 e março de 2017. Metade delas tinham até 29 anos. A maioria na periferia.

Pode ser espantoso para quem vive em um bairro nobre, protegido por câmeras, muros altos e um batalhão de seguranças que o principal alvo da violência no Brasil não sejam homens e mulheres brancos e ricos. Mas os dados não trazem novidade para quem sente na pele um genocídio em curso.

Nas redes sociais, essas pessoas são mortas uma segunda vez através de postagens preconceituosas e violentas que dizem que "se levaram bala é porque estavam em lugar que gente honesta não frequenta".

"Se você escolher falar merda e defender bandido é escolha sua. Seu merda! Se for errado paga com a vida! Mexeu com o exército, assinou sua sentença! Sua família vai pagar! Aguarde as cartas. " Foi assim que o perfil "erikprocopio" ameaçou o jornalista Carlos de Lannoy, que havia feito reportagem sobre a execução para o programa "Fantástico", da TV Globo, nas redes sociais. Lannoy deve tomar medidas contra a ameaça. A declaração do mentecapto comprova o que acabei de dizer.

Essa diferença nas taxas de homicídios de negros, como já tratei aqui, seria razão mais do que suficiente para ocuparmos as ruas das grandes cidades em protesto. E, de forma racional, pedindo ações estruturais que melhorem a qualidade de vida, garantam justiça social, possibilitem empregos e educação de qualidade aos mais jovens, capacitem e remunerem decentemente as forças de segurança, invista na inteligência dessas mesmas forças de segurança, descriminalizem as drogas, entre outras medidas preventivas, que podem garantir um contexto mais seguro. E não adotando saídas fáceis e bizarras, como colocar mais crianças nas cadeias ou afrouxar a punição para mortes cometidas por policiais.

Infelizmente, mortes de negros e pobres, principalmente os mais jovens, não valem o arranhão deixado no teflon de um panela batida.

Já perguntei isso aqui, mas não custa repetir: policiais e militares não atiram em famílias de brancos ricos impunemente na Barra da Tijuca ou no Morumbi, apesar de ser nos bairros ricos das grandes cidades a morada de grandes criminosos, tanto do tráfico e da milícia quanto do poder econômico. Por que isso ocorre com negros pobres nos Extremos da Zona Norte e Oeste do Rio ou nos Extremos da Zona Leste e Sul de São Paulo?

Se você já tinha deduzido que é porque a vida, nesses locais, vale muito menos, parabéns. Você realmente conhece o seu país.

Em tempo: o Congresso aprovou e Michel Temer sancionou a lei 13.491/2017 que transferiu à Justiça Militar o julgamento de crimes cometidos por militares das Forças Armadas em missões, como a que começou no Rio de Janeiro em 2018. Ou seja, pelo texto aprovado, se um militar matar um civil durante uma operação em uma comunidade será julgado pela Justiça Militar e não mais pelo Tribunal do Júri, como todos nós. Tem rabo e focinho de impunidade.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.