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Leonardo Sakamoto

Exército não matou ninguém, diz Bolsonaro. No Brasil, negro pobre é ninguém

Leonardo Sakamoto

12/04/2019 17h21

Familiares de Evaldo Rosa dos Santos se desesperam no enterro do músico morto no Rio. Foto: Mauro Pimentel/AFP

"O Exército não matou ninguém, não. O Exército é do povo. A gente não pode acusar o povo de ser assassino não. Houve um incidente, houve uma morte, lamentamos a morte do cidadão trabalhador, honesto, está sendo apurada a responsabilidade."

O presidente Jair Bolsonaro quis dizer que a instituição não matou ninguém, mas sua frase não deixa de ter razão. O músico Evaldo Rosa dos Santos, executado quando o carro em que estava com a família foi alvejado por 80 tiros disparados por militares, na Zona Norte do Rio de Janeiro, neste domingo (7), não era ninguém.

Era negro, pobre e morador da periferia. Ou seja, "ninguém" diante do racismo estrutural de nosso Estado e de nossa sociedade. Na melhor das hipóteses, por ter carro e emprego, um cidadão de segunda categoria.

A morte de Evaldo não é uma questão pontual, um "incidente", como disse tanto Bolsonaro quanto o ministro da Defesa, Fernando Azevedo e Silva. Mas se repete a todo o momento com outras identidades e biografias. Nove entre cada dez pessoas mortas pela polícia no Estado do Rio de Janeiro são negras. O dado foi obtido pelo UOL através da Lei de Acesso à Informação. Organizadas com base em boletins de ocorrência da Polícia Civil, as informações mostram que, ao menos, 1227 pessoas foram mortas pela força policial entre janeiro de 2016 e março de 2017. A maioria na periferia. E o Rio não tem 90% de população negra.

Já o vice-presidente Hamilton Mourão afirmou que "sob pressão e sob forte emoção, ocorrem erros dessa natureza". Vale lembrar que a proposta legislativa do ministro da Justiça e Segurança Pública, Sérgio Moro, prevê que juízes possam deixar de aplicar punição por morte cometida em legítima defesa se o "excesso decorrer de escusável medo, surpresa ou violenta emoção". Aprovado, isso até poderia beneficiar os envolvidos na execução. Mas nem precisa, porque devem ser julgados pela Justiça Militar devido à lei 13.491/2017 que transferiu o julgamento de crimes cometidos por militares das Forças Armadas em missões. Ou seja, se um militar matar um civil durante uma operação em uma comunidade será julgado pela Justiça Militar e não mais pelo Tribunal do Júri, como todos nós.

Não é a primeira, nem a última vez que agentes de segurança metralham carros de inocentes que deram o azar de ter a cor errada na hora errada.

O veículo em que estavam Wesley (25), Wilton (20), Cleiton (18), Roberto (16) e Carlos Eduardo (16) foi metralhado na madrugada entre 28 e 29 de novembro de 2015, em Costa Barros, também na Zona Norte do Rio, por policiais – que ainda tentaram plantar uma arma a fim de justificar o crime. Ao todo, teriam sido 111 disparos. Alguns dos rapazes ficaram deformados devido à quantidade de projéteis.

"Uma semana antes de ser morto, ele me deu um abraço, falou que eu ia ter muito orgulho dele, que ele seria um grande oficial da marinha", lembra Carlos Henrique do Carmo Souza, pai de Carlos Eduardo, que me deu uma entrevista depois do ocorrido. Conta que sua ex-esposa, emocionada durante o velório, abraçou o rapaz dentro do caixão, acreditando que ele estaria apenas dormindo. Puxada pelos presentes, acabou erguendo o corpo do filho e percebeu que estava sem o maxilar. "Não tive coragem de contar tudo para ela. Ele ficou todo destruído."

Carlos Henrique carregava as fotos dos rapazes mortos em seu táxi para que não fossem esquecidos. Disse que, além do despreparo e da burrice dos policiais envolvidos, houve racismo no crime. Todos eram negros.

O Brasil segue adotando o terrorismo de Estado contra sua própria população. Dessa forma, vamos nos afastando das mudanças estruturais para garantir paz – que incluem um Estado que pense em qualidade de vida para todos, forças de segurança treinadas para agir com inteligência e não matar a todo o instante e que sejam punidas em caso de desvios e um horizonte de opções para os mais jovens que saem em busca de um lugar no mundo.

Não há ordens diretas para metralhar negros e pobres da periferia dados pelo comando do poder público. Mas nem precisaria. Primeiro, as forças de segurança em grandes metrópoles, como o Rio ou São Paulo, são treinadas para, primeiro, garantir a qualidade de vida e o patrimônio de quem vive na parte "cartão postal" das cidades, atuando na "contenção" dos mais pobres. Segundo, com governadores e um presidente que apoia a letalidade policial como política de combate à violência, a percepção da impunidade ajuda a apertar o gatilho primeiro e só perguntar depois.

Policiais e militares não são monstros alterados por radiação para serem insensíveis ao ser humano. Não é da natureza da maioria das pessoas que decide vestir farda (por opção ou falta dela) tornar-se violenta. Elas aprendem a agir assim. No cotidiano da instituição a que pertencem (e sua natureza mal resolvida), na formação profissional que tiveram, na exploração diária como trabalhadores e na internalização de sua principal missão: manter a ordem (e o status quo) a qualquer preço.

Mas as Forças Armadas, ao contrário da polícia, são treinadas para matar. Seus membros não têm liberdade para tomar decisões que levem em conta a situação do local em que estão em um determinado momento. Mais do que seguir ordens de um comando militar que vê a necessidade de vencer uma batalha, o objetivo deveria ser proteger a vida e a dignidade humanas acima de qualquer outra coisa. Por isso, sua função deveria ser atuar em apoio e em serviços de inteligência e não no contato direto com a população.

Tudo isso com a anuência de uma parte da população. Parte do Brasil não se indigna diante do fato da mulher negra ganhar, em média, muito menos que o homem branco para uma mesma função. Indigna-se com quem diz que racismo existe. Não fica revoltado diante da morte de negros pobres e periféricos. Revolta-se com a filha negra da empregada se sentar no mesmo banco de faculdade que eles. Não acha preconceito dar porrada no sujeito que foi acusado de roubar o próprio carro no estacionamento de um supermercado por ser negro. Para ele, preconceito são cotas.

Ao matar Evaldo, o Exército estava matando os inimigos, os estrangeiros, os de fora, os ninguéns, na visão de uma parte da sociedade. Porque esses substituíveis, pobres moradores das periferias – onde as batalhas são sempre travadas – nunca foram considerados como cidadãos tanto por aqueles que lucram com o medo quanto por aqueles que temem mais o discurso da violência do que a vivenciam em si.

Bolsonaro afirmou que o Exército sempre aponta responsáveis e não joga nada "para debaixo do tapete". Disse que uma investigação vai mostrar as circunstâncias da execução para se "ter realmente certeza do que aconteceu naquele momento".

Mas essa certeza já existe: o Estado matou mais um inocente.

Se for uma investigação honesta, questionará a forma com a qual as Forças Armadas estão sendo usadas para execução da política de segurança pública. Mas não apenas isso. Essa morte é a prova de que falhamos. Profundamente, amargamente. Não apenas ao manter, ao longo dos anos, governantes incompetentes, corruptos e insensíveis, que perseguem soluções simplistas e fogem de ações estruturais, mas também ao permitir que a cidadania não seja universalizada (desde 13 de maio de 1888) e que a vida desses ninguéns valham menos do que um instrumento descartável de trabalho. E ter possibilitado que, em meio às trevas de uma crise econômica que se tornou institucional, crescesse a força de discursos autoritários e violentos que prometem resolver tudo isso que está aí com mão de ferro, botando ordem na base da porrada.

Se a investigação for honesta mostrará que somos um país tão covarde que fomos capazes de declarar guerra ao nosso próprio povo.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.