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Leonardo Sakamoto

Ernesto: jogador vira-casaca ou outro café com leite do time de Bolsonaro?

Leonardo Sakamoto

08/05/2019 01h41

O chanceler Ernesto Araújo.: Foto: Fabio Pozzebom / Agência Brasil

Nos meus tempos de moleque, quando alguém bem mais novo queria jogar futebol com as crianças mais velhas, acontecia – por vezes – de ela ficar em um dos times, mas sem contar realmente para o número de membros da equipe. Ele fingia que jogava, talvez acreditasse estar jogando de verdade, correndo ali perdida de um lado para o outro, e sendo perdoado das eventuais boladas. E o jogo de verdade seguia, sem que ele interferissem em seu andamento. Esse era o chamado jogador "café com leite".

Temos hoje no Itamaraty, o ministério responsável pela política externa brasileira, um desses jogadores café com leite. Escalado como chanceler, Ernesto Araújo não tem comando algum sobre a diplomacia, é desprezado e ridicularizado pelos colegas de profissão e dedica seu tempo a brincar de ideólogo e revolucionário de redes sociais enquanto a política externa, a que pode ser salva, vai sendo tocada pela máquina do ministério.

Nesta semana, enquanto o vice-presidente, general Hamilton Mourão, comanda os preparativos para a importante reunião da Comissão Sino-Brasileira, um encontro estratégico com a China, envolvendo múltiplos ministérios e áreas de governo, Ernesto sai para um irrelevante giro ideológico pelos regimes populistas da Europa: Hungria, Polônia e Itália.

Na semana passada, enquanto os países latino-americanos que defendem a queda de Maduro (o Grupo de Lima, que inclui o Brasil) se reunia no Peru, atropelavam a posição radical de Ernesto e decidiam em favor de abertura do diálogo com países mais simpáticos a Maduro (incluindo Cuba e Equador), o nosso chanceler se prestava a um papelão em uma cerimônia na frente do presidente Jair Bolsonaro, dos novos diplomatas formandos do Instituto Rio Branco, e de seus convidados, chorando por diversas vezes em um discurso constrangedoramente infantil. Nele, chegou a comparar seu chefe a Jesus Cristo.

Logo antes disso, ainda, nosso Ernesto brincava de conspiração nos Estados Unidos, reunindo-se com estrategistas e ideólogos do governo Donald Trump com uma frequência inaudita em relações internacionais. Conhecendo a peça, militares expressaram preocupação com o que pode ser considerada uma atitude imprópria de um chanceler brasileiro, e mais condizente com a de um jogador vira-casaca, em conluio com interesses norte-americanos.

Vira-casaca ou café com leite? Como explicar, de outro modo, a vergonhosa "negociação" em que o Brasil abriu mão de tratamento especial para país em desenvolvimento na Organização Mundial do Comércio (OMC) em troca da mera promessa de apoio dos EUA à entrada na OCDE, o clube dos países ricos? Não deu outra: nesta terça (07), os EUA seguiram bloqueando a entrada do Brasil na OCDE ao mesmo tempo em que cinicamente louvaram a "atitude de liderança brasileira" que abriu mão do tratamento especial na OMC. Há vários nomes possíveis para qualificar o negociador-chefe do Brasil nessa negociação em particular. Um seria "otário". Outro possível seria um termo resgatado dos anos 90: "entreguista".

Se fosse pelo Ernesto, o atendimento aos interesses exclusivos dos EUA não parava por aí. Como tem sido noticiado, veio dele a ideia de abrir o território brasileiro a uma hipotética passagem de tropas americanas, bem como a ideia de ceder território do Brasil para uma base militar norte-americana. Ambas as ideias não vingaram, pois foram vetadas por quem, no Brasil, ainda mantém alguma dose de sensatez e respeito à soberania.

Café com leite ou vira-casaca? A resposta já deve ter lhe ocorrido: ambos. Para nossa desgraça, temos alguém jogando contra no comando formal da política externa brasileira, alguém que, assim como Trump, reza pelo credo de "America First", mas sem ser norte-americano. Para nossa sorte, esse mesmo jogador é um café com leite, incapaz de levar a cabo a maior parte de suas tentativas de sabotagem, incapaz até mesmo de evitar que seu chefe, o presidente Jair Bolsonaro, fosse humilhado mundialmente pelos cancelamentos do Museu de História Natural, como local, e de empresas, como patrocinadoras, de um evento que faria uma homenagem a ele em Nova York. Bolsonaro foi alvo de protestos por seu comportamento diante do meio ambiente e de minorias.

Ao contrário do ex-ministro Ricardo Vélez na Educação, que acabou entregue ao caos gerado pela própria incompetência e a dos seus indicados e os de Olavo de Carvalho para o ministério, Ernesto, o café com leite, tem a sorte de ter sido colocado como capitão de um time de jogadores profissionais, o Itamaraty, que, graças a uma carreira estruturada de diplomatas, ainda consegue ir tocando o barco de forma minimamente ordenada, ignorando o quanto pode o seu ministro incoerente, incompetente, entreguista e chorão.

É um pequeno consolo, mas nosso país merecia algo melhor do que isso.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.