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Leonardo Sakamoto

Mortes de Evaldo e Luciano por militares representam terrorismo de Estado

Leonardo Sakamoto

10/05/2019 22h38

Familiares de Evaldo Rosa dos Santos se desesperam no enterro do músico morto no Rio. Foto: Mauro Pimentel/AFP

Os 12 militares envolvidos nas mortes do músico Evaldo Rosa dos Santos e do catador de materiais recicláveis Luciano Macedo, em Guadalupe, Zona Norte do Rio de Janeiro, em abril deste ano, foram denunciados pelo Ministério Público Militar. Evaldo foi executado quando o carro em que estava com a família indo para um chá de bebê foi cravado de balas ao ser confundido com outro. Já Luciano foi atingido quando tentava ajudar a família do músico que estava no veículo (e sobreviveu), morrendo 11 dias depois.

Eles vão responder por duplo homicídio qualificado, tentativa de homicídio e omissão de socorro, de acordo com reportagem do UOL Notícias. Foram disparados 257 tiros de fuzil e de pistola, dos quais 83 acertaram o carro. Nove atingiram Evaldo. Dos 12 militares, nove estão presos.

Uma coisa é a denúncia, outra o julgamento, a condenação e o cumprimento de pena.

Os 12 deveriam estar sendo processados pela Justiça comum. Mas o Congresso Nacional aprovou e Michel Temer sancionou a lei 13.491/2017 que afastou a competência do Tribunal do Júri para crimes cometidos por militares das Forças Armadas em missões estabelecidas pela Presidência da República ou pelo ministro da Defesa, como aquelas realizadas no Rio de Janeiro. Ou seja, pelo texto aprovado, se um militar mata um civil durante uma operação em uma comunidade será julgado pela Justiça Militar.

Não estou dizendo que este julgamento terá cartas marcadas por conta de corporativismo. Mas os eles deveriam responder ao crime como todos nós, diante de jurados escolhidos entre a população. A questão não é a Justiça que será mais "dura" ou mais "amena", mais "célere" ou mais "lenta". Mas essa decisão tomada por um Tribunal do Júri seria importante para nós, como sociedade.

Há uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI 5901) ajuizada no Supremo Tribunal Federal, pelo PSOL, questionando a mudança. Segundo o partido, essa alteração feriu o princípio da igualdade perante a lei, relativizou o devido processo legal e tratorou a Constituição Federal – que reconhece no artigo 5o, inciso 38, a competência do Tribunal do Júri para crimes contra a vida. O caso ainda não foi analisado e o relator é o ministro Gilmar Mendes.

Brasil segue adotando o terrorismo de Estado contra sua própria população. Dessa forma, vamos nos afastando das mudanças estruturais para garantir paz – que incluem um Estado que pense em qualidade de vida para todos; forças de segurança treinadas para agir com inteligência e não matar como reação básica – e que sejam punidas em caso de desvios; e a oferta de um horizonte com opções para os jovens pobres que saem em busca de um lugar no mundo. As Forças Armadas nem deveriam estar atuando em contato direto com a população, mas em apoio a outros agentes de segurança e em serviços de inteligência.

Repito o que escrevi logo após o ataque a Evaldo e Luciano. Não é da natureza da maioria das pessoas que decide vestir farda (por opção ou falta dela) tornar-se violenta. Elas aprendem a agir assim. No cotidiano da instituição a que pertencem, na formação profissional que tiveram, na exploração diária como trabalhadores e na internalização de sua principal missão: manter a ordem (e o status quo) a qualquer preço. Tudo com a anuência de uma parte da população, que não se indigna diante da morte de negros pobres e periféricos. Indigna-se com quem diz que racismo existe. 

Não há ordens diretas para metralhar negros e pobres da periferia dados pelo comando do poder público. Mas nem precisaria. Primeiro, as forças de segurança em grandes metrópoles, como o Rio, são treinadas para, primeiro, garantir a qualidade de vida e o patrimônio de quem vive na parte "cartão postal" das cidades, atuando na "contenção" dos mais pobres. Segundo, com um governador e um presidente que apoiam a letalidade policial como política de combate à violência, a percepção da impunidade ajuda a apertar o gatilho primeiro e só perguntar depois.

Bolsonaro afirmou, sobre o caso, que o Exército sempre aponta responsáveis e não joga nada "para debaixo do tapete". Disse que uma investigação vai mostrar as circunstâncias da execução para se "ter realmente certeza do que aconteceu naquele momento".

A certeza do que aconteceu já existe: o Estado matou mais dois inocentes. Esperemos que não seja covarde de não admitir isso.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.