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Leonardo Sakamoto

Brasileiros e venezuelanos escravizados são resgatados em RR, no MA e na PB

Leonardo Sakamoto

13/05/2019 18h53

Trabalhadores resgatados em fazenda de gado no Maranhão

Um casal de refugiados venezuelanos foi resgatado de condições análogas às de escravo de uma fazenda em Mucajaí, em Roraima, nesta segunda (13). Enquanto isso, outros 19 trabalhadores eram resgatados em uma fazenda em Santa Luzia do Tide, no Maranhão. E mais 12 na exploração do caulim, em Salgadinho, na Paraíba. 

Desde 1995, quando o Estado brasileiro reconheceu a persistência de formas contemporâneas de escravidão no país, o poder público já libertou mais de 53 mil pessoas. A atuação simultânea em diversas partes do país de grupos de fiscalização especializados no combate ao trabalho escravo é comum, desde 1995, e atende a denúncias que chegavam ao Ministério do Trabalho e, hoje, destinam-se ao Ministério da Economia. Coincidentemente, três operações estão em curso neste 13 de maio, quando se completam os 131 anos da Lei Áurea.

A operação em Roraima, coordenada por auditores fiscais do trabalho do Ministério da Economia, contou com a participação de um procurador do Ministério Público do Trabalho e de agentes da Polícia Rodoviária Federal. O marido havia se tornado caseiro da propriedade, em abril de 2018, sob a promessa do pagamento de um salário mínimo mensal, alimentação e habitação. Devido à insistência do próprio empregador, trouxe a esposa para ajudar no serviço em julho, sob nova promessa de que ela também receberia. Contudo, acabou ganhando apenas adiantamentos em torno de R$ 150,00 e, há três meses, nada recebe. Ela, por sua vez, nunca ganhou.

De acordo com Giuliana Cassiano, auditoria fiscal do trabalho que participa da operação, o empregador, Wenderson Quirino dos Santos, descontente com a fiscalização, gritava muito. Ele estava com uma arma de fogo, munição e uma faca e acabou desarmado e detido pelos policiais.  Os vizinhos e outros trabalhadores relataram aos fiscais que ele tem uma personalidade agressiva. O blog não conseguiu contato com o empregador ou seu advogado e, tão logo consiga, irá trazer seu posicionamento.

Segundo a auditora fiscal do trabalho, ele teria prometido ao casal que poderiam buscar gêneros alimentícios em uma padaria que ele possui na cidade. Mas a quantidade que conseguiam não era suficiente para manter a família. Isso, somado à distância entre a fazenda e o centro do município, fez com que dependessem de doações dos vizinhos. Quando a fiscalização foi até a casa que servia de alojamento, eles não tinham o que comer.

O alojamento era precário – o empregador havia fornecido apenas uma cama para o casal e os três filhos. Parte deles passou a dormir no chão mas, devido à presença de cobras no local, improvisaram uma mesa como cama.

"Com a ajuda da OIM [Organização Internacional de Migração] e da Acnur [Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados], foi possível conseguir um abrigo para o casal, os filhos, e outros trabalhadores venezuelanos, que não estavam na mesma situação, mas que não tinham todos os direitos respeitados pelo mesmo empregador", afirma Giuliana Cassiano.

Jararaca na água

Enquanto isso, outra equipe do grupo móvel de fiscalização está resgatando 19 trabalhadores de trabalho análogo ao de escravo na fazenda Thâmia, em Santa Luzia do Tide, Maranhão, em operação com auditores fiscais do trabalho, Ministério Público do Trabalho, Defensoria Pública da União e a Polícia Ambiental do Estado que começou no dia 9 de maio.

A fazenda maranhense possui 2.200 hectares e 2 mil cabeças de gado. Do total, 16 pessoas atuavam no "roço de juquira" (limpeza de pasto), um era vaqueiro e outras duas, cozinheiras para os demais. Dois deles são menores de idade, com 16 e 17 anos. O blog tentou contato com a empresa proprietária – A Richards Tavares Lima – e com o administrador da fazenda, Francisco Tavares Lima, mas não conseguiu até a publicação deste texto. Assim que obtiver, ele será atualizado com seus posicionamentos.

Grupo móvel de fiscalização durante operação que resgatou venezuelanos em condições análogas às de escravo em uma fazenda em Roraima

De acordo com Andréia Donin, auditora fiscal do trabalho e coordenadora da operação, os responsáveis pela fazenda comprometeram-se a pagar os salários devidos e as verbas rescisórias do grupo. Os maiores valores são de dois homens que trabalhavam lá desde 2013.

O alojamento onde estavam 18 dos trabalhadores era um barracão precário, com paredes de madeira, sem banheiros, água encanada e energia elétrica. Parte deles ficava em uma área de varanda, sem paredes, sendo atingida pelas chuvas fortes que caem na região nessa época do ano. Dormiam em redes que eles mesmos haviam trazido porque não havia camas ou colchões. Num espaço de seis por sete metros, convivia uma família (com crianças de dois e três anos) com os demais.

O mato era usado para necessidades fisiológicas e o banho feito com água de um cacimba cavada no chão a 100 metros de distância – também usada para matar a sede, cozinhar, lavar utensílios e roupas. Retiravam a água com uma embalagem usada de agrotóxico, no qual amarravam uma corda. Durante a fiscalização, a equipe de fiscalização constatou a existência de uma jararaca aninhada na parede da cacimba. Como não havia privacidade, as mulheres esperavam para tomar banho.

A coordenadora da operação afirma que o empregador não fornecia equipamentos de proteção individual. Os barracões onde eles ficavam estavam a 5 quilômetros da sede, a pé ou montado em burro, mais uma travessia de canoa por um rio profundo (parte dos trabalhadores não sabia nadar), e, pelo menos, mais um quilômetro de caminhada. Os trabalhadores relataram que demoravam mais de duas horas de deslocamento até a sede.

Segundo Andréia Donin, o líder do grupo dos roçadores estava devendo mais de R$ 3 mil para um mercado próximo, onde ele comprava alimentação para os trabalhadores. E devendo R$ 1200,00 para a própria fazenda, após ter pedido um boi para ser abatido e servido a eles.

"Eles estava recebendo por produção, mas o valor era muito baixo. Os trabalhadores ganhavam, em média, R$ 400,00 por mês. Ou seja, alguns recebiam até menos que isso", afirmou a coordenadora da operação. De acordo com a fiscalização, os trabalhadores estavam submetidos a "situações de vida e trabalho que aviltavam a dignidade humana e caracterizavam condição degradante de trabalho, que caracterizam trabalho análogo ao de escravo".

Resgate na mineração 

Por fim, 12 trabalhadores foram resgatados de condições análogas às de escravo na exploração do caulim, em Salgadinho, no sertão da Paraíba. Mineral inerte, ele é usado na indústria de borracha, papel, plásticos, pesticidas, rações, produtos farmacêuticos, entre outras.

De acordo com Gislene Stacholski, auditora fiscal do trabalho e coordenadora da operação, eles estavam em condições degradantes de trabalho. Eram descidos por cordas, em poços abertos no solo, a profundidades de 40 a 60 metros da superfície, sem equipamentos de proteção individual e sem segurança.

Enfrentavam calor e umidade e o risco constante de desabamento para explorar o mineral branco. Não havia água potável, nem banheiros. Ganhavam entre R$ 500,00 e R$ 600,00 mensais. A operação contou com a participação de auditores fiscais do trabalho, do Ministério Público do Trabalho, da Defensoria Púbica da União e da Polícia Rodoviária Federal. 

A equipe de fiscalização está analisando outros corresponsáveis pela exploração dos trabalhadores e, portanto, a informação sobre os empregadores será revelada posteriormente para não atrapalhar as investigações.

Jararaca que estava na cacimba onde trabalhadores retiravam água para beber, tomar banho, cozinhar e lavar roupa

Ao todo, o governo federal resgatou mais de 300 pessoas do trabalho escravo contemporâneo desde janeiro. Com extinção do Ministério do Trabalho, a área responsável pela fiscalização dessa forma de exploração passou para o Ministério da Economia – que vem mantendo o funcionamento do processo de verificação de denúncias, libertação de pessoas, obrigação do pagamento de salários e direitos trabalhistas e produção de subsídios para os devidos processos criminal e trabalhista.

Hoje, quatro elementos podem definir escravidão contemporânea no Brasil: trabalho forçado (que envolve cerceamento do direito de ir e vir), servidão por dívida (um cativeiro atrelado a dívidas muitas vezes fraudulentas), condições degradantes (trabalho que nega a dignidade humana, colocando em risco a saúde e a vida) ou jornada exaustiva (levar ao trabalhador ao completo esgotamento dado à intensidade da exploração, também colocando em risco sua saúde e vida).

O Brasil foi um dos primeiros países a reconhecer, diante das Nações Unidas, a persistência de formas contemporâneas de escravidão. Foi o primeiro a criar uma política nacional efetiva de libertação de trabalhadores em 1995. O primeiro a lançar um plano integrado de combate ao crime em 2003 e a publicar, periodicamente, um cadastro com os infratores a partir do mesmo ano. Criou o primeiro pacto empresarial multi-setorial contra a escravidão em 2005. E implementou ações pioneiras de repressão e prevenção que se tornaram referência em todo o mundo.

Contudo, em 2017, tornou-se o primeiro país a ser condenado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos em um caso de trabalho escravo por omissão – Caso Fazenda Brasil Verde. O governo foi o primeiro que se tem notícia a recorrer à Justiça para deixar de cumprir uma medida considerada exemplar pelas Nações Unidas no combate à escravidão, que era a publicação do cadastro de infratores, a "lista suja" do trabalho escravo, durante o governo Temer. E o primeiro que tentou, em outubro de 2017, a dificultar a libertação de pessoas – quando foi pressionado pela sociedade civil, parte dos empresários e investidores (que temiam perder com possíveis boicotes) e pelo Supremo Tribunal Federal a voltar atrás.

Análise – Uma abolição incompleta

O Brasil não chancela mais a propriedade de uma pessoa por outra desde 13 de maio de 1888 – por isso, a lei fala de "trabalho análogo ao de escravo". Mas o país nunca conseguiu inserir socialmente a população negra. Os descendentes daqueles trabalhadores escravizados do final do século 19 continuam a apresentar indicadores sociais e econômicos muito abaixo dos brancos. Por exemplo, recebem menos pela mesma função de acordo com a ONU e o IBGE.

Uma análise dos relatórios de fiscalização do governo federal entre 1995 e hoje aponta que há muito mais negros entre os trabalhadores libertados da escravidão contemporânea do que sua proporção na sociedade, dada à vulnerabilidade histórica desse grupo. Pois, se por um lado, o trabalhador escravizado contemporâneo é o pobre, por outro, o pobre tem cor de pele. E ela é principalmente negra.

O 13 de Maio é apresentado como uma representação da liberdade quando, em verdade, a data nos remete a uma abolição imperfeita e tardia, adiada ao longo da segunda metade do século 19 pelo poder econômico. Enquanto isso, o dia 20 de novembro, escolhido para celebrar a Consciência Negra e o protagonismo de homens e mulheres negros, é duramente criticado por muitos daqueles que dizem não haver racismo no Brasil.

Reportagem de Angela Pinho, da Folha de S.Paulo, do último dia 5, apontando os efeitos da "guerra cultural" nas instituições católicas de ensino, mostrou que há pais que questionaram escolas por ignorar o "lado bom" da escravidão e mostrar apenas um ponto de vista. A isso se soma declaração do próprio Bolsonaro, quando pré-candidato à Presidência da República. Ele questionou, no dia 30 de julho do ano passado, durante entrevista ao programa Roda Viva, da TV Cultura, a dívida que a sociedade tem com negros e negras por conta dessa abolição mal feita e, consequentemente, a perpetuação das desigualdades e injustiças sociais: "Que dívida? Eu nunca escravizei ninguém na minha vida".

Para além da luta contra nosso racismo estrutural e da batalha para manter de pé o sistema de combate ao trabalho escravo contemporâneo, este momento abre um novo desafio. Nesse contexto, é fundamental proteger o ensino de História nas escolas contra a tentativa dos que querem que estudantes saibam a data em que foi assinada a Lei Áurea, mas não seja instigado a pensar por que o 13 de maio de 1888 não permitiu autonomia aos negros e negras deste país.

A foto que abre esta matéria mostra que o grupo de trabalhadores resgatados no Maranhão é negro. Portanto, a data não deveria remeter à celebração, mas à reflexão. Pois a escravidão que moldou a forma como os brasileiros se relacionam com o trabalho segue por aí, de roupa nova, mas com o mesmo cinismo.

Post atualizado às 22h, do dia 13/05/2019 para inclusão de informações. 

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.