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Leonardo Sakamoto

Para Bolsonaro, investigação de corrupção só vale se for contra os outros

Leonardo Sakamoto

17/05/2019 14h11

Foto: Wilson Dias/Agência Brasil

"Venham pra cima de mim! Não vão me pegar."

Em pouco mais de 24 horas, o presidente da República chamou de "idiotas úteis" e "imbecis" estudantes e professores que protestaram contra cortes no orçamento da educação; atacou publicamente (mais) uma repórter que lhe fez uma pergunta incômoda, promovendo o seu linchamento virtual; passou a mão na cabeça de seu filho, um senador da República, investigado em um caso de lavagem de dinheiro e organização criminosa; e se comportou como quem está em uma briga de rua, fustigando o Ministério Público.

Quando irritado, ele tende a ser mais sincero e honesto com o que pensa, provavelmente porque manda às favas qualquer tentativa de media training e técnica de controle de raiva que tenha recebido. Reafirma-se o verdadeiro Jair Bolsonaro.

Para além da insatisfação de ver seu nome sendo chamado de "inimigo da ciência", "presidente sem educação" e, claro, "idiota inútil" por centenas de milhares de jovens e docentes em mais de 200 cidades, o que está tirando o seu humor é a investigação contra seu primogênito. Pois a quebra dos sigilos fiscal e bancário de 86 pessoas e nove empresas aponta uma drenagem dos cofres públicos a partir do desvio de remuneração de funcionários reais ou de assessores-fantasmas.

O problema, para os Bolsonaros, é que os investigados não trabalharam apenas no gabinete de Flávio, mas também no do então deputado federal Jair e no do vereador Carlos. Ou seja, a investigação tem potencial, não apenas, para derrubar Flávio Bolsonaro, mas atingir também seu pai.

E a questão da corrupção não é o único dos temores. O caso pode aprofundar relações entre a família Bolsonaro e as milícias, lembrando que a esposa e a mãe de Adriano da Nóbrega, um dos líderes do "Escritório do Crime", eram funcionárias de Flávio e também tiveram seus sigilos quebrados. Com exceção do naco de seus seguidores que é dodói da cabeça, a maioria dos 57 milhões que nele votaram não gostaria de descobrir que elegeu alguém relacionado a grupos de extermínio. Tampouco chefes de Estados de países com os quais temos relações se sentiriam à vontade de apertar sua mão em público.

O "garoto" Flávio

Por mais que tenha ficado 28 anos no Congresso Nacional, Bolsonaro nunca fez parte do centro do poder e usou isso ad nauseam em sua campanha eleitoral para mostrar que era "novo", apesar de "velho".

Nunca participou dos grandes esquemas que envolveram PT e PSDB, mas também MDB e PFL/DEM. O que não significa que não ignorou a  separação entre público e privado. Por exemplo, ao manter assessores parlamentares fantasmas que eram personal trainers ou vendiam açaí no litoral em horário de trabalho. Não é de se estranhar, portanto, que a investigação sobre o gabinete de seu filho tenha o foco na famosa "rachadinha", que é a devolução de parte ou da totalidade dos salários pagos aos funcionários. Era a possibilidade à mão.

A irritação do presidente diante da investigação contra seu filho Flávio é seletiva, como é a da maioria dos políticos quando confrontada com fatos que a constrange. Para ele, o Ministério Público e a imprensa fazem o seu papel de investigar, reportar, analisar quando o alvo são seus adversários – papel, aliás, que lhe foi muito útil quando o alvo era Lula e sua prole. Mas os mesmos atores extrapolam e são "escandalosos" quando é contra si e sua família.

No dia 24 de janeiro, em entrevista à TV Record, ele afirmou que "não é justo atingir um garoto, fazer o que estão fazendo com ele, para tentar me atingir." No dia 16 de maio, manteve o mesmo estilo de justificativa e disse, em entrevista nos Estados Unidos, que "desde o começo do meu mandato, o pessoal está atrás de mim o tempo todo, usando a minha família".

Flávio Bolsonaro não é um "garoto", apesar de seu pai tratá-lo como tal. É um senador da República e não deveria fugir de um depoimento, frente a frente, com os promotores do caso. Ao mesmo tempo, Jair Bolsonaro, como presidente da República, deveria zelar pela transparência como pilar da democracia e não atacar quem está tentando encontrar respostas a partir de indícios de irregularidades. Aliás, ele e sua família precisariam ser os principais interessados em esclarecer que não cultivaram, por anos, um imenso laranjal. E responder perguntas que estão por aí, há meses.

Qual a origem da movimentação de R$ 1,2 milhão nas contas de Fabrício Queiroz, que deu origem a todo esse caso? Por que não há registros de compra e venda de carros, atividade que Queiroz usou para justificar o dinheiro? Por que funcionários do gabinete de Flávio Bolsonaro depositaram recursos nas contas de Queiroz? Todos os funcionários que trabalhavam nos gabinetes de Flávio e de Jair cumpriam suas atribuições diárias? Aliás, todos eles existiam como funcionários? Como foi o empréstimo que Bolsonaro diz ter feito a Queiroz, que justificaria o depósito de R$ 24 mil na conta da hoje primeira-dama e quando foram devolvidos os outros R$ 16 mi do total de R$ 40 mil citados pelo presidente? Qual as origens das outras movimentações milionárias identificadas cuja explicação dada pelo senador deixou mais dúvidas do que respostas? Por que o ministro Sérgio Moro, com larga experiência em investigações, denúncias e julgamentos de "movimentações atípicas", não tem nada a dizer sobre o caso? Onde está a lista de assessores informais na base eleitoral de Flávio pagos com o dinheiro que Queiroz afirmava recolher dos funcionários na Alerj? Recursos públicos desviados da Assembleia beneficiaram milícias? Por que Flávio não abriu um imobiliária ao invés de uma loja de chocolates, uma vez que sabe "fazer dinheiro" com compra e venda de imóveis? Por que a laranja dá tão bem em solo brasileiro?

A verdade liberta

"Conhecereis a verdade e a verdade vos libertará." A passagem bíblica preferida do presidente da República é um ótimo conselho a ele próprio. Tanto Flávio Bolsonaro quanto Fabrício Queiroz evitaram entregar à sociedade "explicações plausíveis" sobre as "movimentações atípicas" – que, primeiro, vieram a público pelas contas do ex-assessor e, depois, pelas do próprio senador. Desde então, a bola de neve só cresceu, erodindo parte da credibilidade da família.

Nesse ponto, concordo com essa passagem, extraída de João, capítulo 8, versículo 32, usada por Jair em uma campanha eleitoral que se vendeu como antissistêmica, prometendo mudar tudo o que está aí, inclusive o comportamento de representantes políticos e sua falta de transparência com a coisa pública.

Porque não adianta fazer um estardalhaço com dados recauchutados sobre empréstimos do BNDES a grandes empresas se ele fica irritado diante de repórteres que trazem pedidos de explicação. Para um governo que acredita no poder transformador da "verdade", é incompreensível que ela seja jogada sistematicamente para baixo do tapete desde o início de dezembro, quando o caso foi divulgado pelo jornal O Estado de S.Paulo.

"Venham pra cima de mim! Não vão me pegar."

A declaração do presidente deveria ser "o senador Flávio Bolsonaro e seu ex-assessor Fabrício Queiroz irão prestar depoimento imediatamente, levando toda a documentação, porque tanto eles, quanto eu, não temos nada a esconder". Contudo, a irritação de Jair, como disse no início deste texto, não permite tal hipocrisia.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.