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Leonardo Sakamoto

Brasil não é "ingovernável", mas Bolsonaro o mantém à deriva

Leonardo Sakamoto

18/05/2019 13h01

Foto: Ueslei Marcelino/Reuters

Quando um presidente dá a entender que o Brasil é ingovernável sem "conchavos", assume que não sabe fazer política – que é a arte de dialogar para resolver conflitos e buscar formas coletivas de construção, garantindo a divisão racional e solidária dos recursos. Mas também que não sabe dividir poder (que é reconhecer que as urnas não lhe deram maioria no Congresso, obrigando-o a negociar), não sabe lidar com o contraditório (que é ter consciência que sua opinião é apenas mais uma e não uma "verdade" libertadora) e não sabe o que é democracia (que é assumir que somos uma colcha de retalhos de interesses legítimos ou não que precisam ser costurados com delicadeza).

O país elegeu um martelo para cuidar de uma sala de cristais. E, ao votar em um, levou mais três.

Carlos, Eduardo, Flávio e Jair compõem juntos o mesmo animal político, como já disse aqui. Cada um tem uma função nesse processo – fortalecer o exército de apoiadores e seguidores nas redes sociais; conectar o governo com a extrema direita global; garantir suporte interno de ruralistas, fundamentalistas religiosos, policiais e, talvez, milícias; ser um animador de torcida. Seu projeto: a própria manutenção da família no poder.

Esse processo é tão coeso que, quando um deles é ferido, a manutenção dos quatro entra em perigo – afinal, compartilham até dos mesmos funcionários. À medida em que avança a investigação do Ministério Público do Rio de Janeiro contra Flávio Bolsonaro e Fabrício Queiroz por desvios de recursos públicos e lavagem de dinheiro, o presidente vai ficando mais nervoso. E avisa ao MP, em um grande spoiler sobre o que há no final da temporada: "Venham para cima de mim! Não vão me pegar".

Com a divulgação de que seu governo estaria em risco por ataques de inimigos (quando, na verdade, ele afunda pelos próprios erros), Bolsonaro e aliados bombam uma manifestação, no dia 26 de maio, para encobrir que a investigação do MP-RJ está apontando para corrupção envolvendo um membro da Primeira Família. Se essa tática vai colar, o que significa que muitos sairão na rua botando a mão no fogo por ele, é difícil saber. 

Tendo passado quase três décadas sem propor ou relatar projetos relevantes no Congresso Nacional, com dificuldade em respeitar os direitos de outras pessoas e caracterizando-se por propagar a política da cisão, era claro que Jair Bolsonaro teria problemas quando assumisse o cargo. O presidente critica articulações, como se fossem algo asqueroso da "velha política" em detrimento da "nova política", que ele estaria apresentando. Dessa forma, dá às costas para algo central na vida em sociedade, a conversa e o debate equilibrados.

Suar a camisa para tentar convencer aliados e contra-argumentar o discurso da oposição, aceitar concessões às propostas originalmente apresentadas, repartir poder quando o seu partido possui apenas 54 das 513 cadeiras da Câmara, tudo isso faz parte da política. É diferente de vender cargos, emendas, leis e portarias, enfim o tomaladacá que sempre regeu muitas relações no parlamento. Mas também é diferente de defender, com unhas e dentes, o seu auxílio-moradia, mesmo tendo imóvel próprio em Brasília; recolher e embolsar parte do salário dos funcionários do próprio gabinete; manter relações próximas com chefes de milícias, inclusive contratando seus familiares; ter ministro e membros do próprio partido envolvidos em laranjais; manter vendedora de açaí como contratada-fantasma do gabinete; não conseguir separar as relações familiares da sua vida pública.

Como também já disse aqui, desde a antiga Atenas, é tênue a linha entre as duas coisas em uma democracia, e cabe a um líder político que se diz honesto estar disposto a dialogar sem sujar as mãos. Bolsonaro vê a Presidência da República como uma gigantesca tribuna, da qual todos são obrigados a ouvi-lo e levá-lo a sério – possibilidade que nunca teve como parlamentar. Parece enxergar a si mesmo como um farol que ilumina a realidade para a população. Entende como verdade tudo aquilo com a qual concorda. De tanto ser chamado de "mito" por seus fãs, talvez leve isso a sério demais.

A legitimidade dada pelas urnas no ano passado lhe garantiu capital político que deveria ter gasto na articulação de projetos de interesse público. Mas deixou que a golden shower o levasse embora. Achar que qualquer mandatário, ao redor do mundo, aprova projetos em seus parlamentos sem gastar muita saliva e sola de sapato na negociação é ver a si mesmo como alguém ungido pelas forças do universo – ou assumir que Venezuela, Coreia do Norte e Hungria são exemplos de democracia.

Ao longo dos últimos cinco meses, Bolsonaro tem mostrado que não gosta de dialogar. Gosta da guerra.

O presidente da República afirmou, neste sábado (18), diante do questionamento da imprensa sobre ter compartilhado um texto em que fala que o país é ingovernável sem conchavos: "apenas passei para meia dúzia". Até uma criança em processo de alfabetização digital sabe que, a menos que se faça uma ressalva, repassar conteúdo significa endosso.

O país não é "ingovernável". Ele apenas está à deriva com Bolsonaro no timão.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.