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Leonardo Sakamoto

Projeto de Trânsito de Bolsonaro vai na contramão da Reforma da Previdência

Leonardo Sakamoto

07/06/2019 04h00

Bicicleta atropelada na avenida Paulista. O ciclista teve o braço decepado pelo motorista, que fugiu sem prestar auxílio, levando o braço preso no parabrisa. Foto: Nelson Antoine/Fotoarena

O pacote de mudanças nas leis de trânsito proposto pelo presidente Jair Bolsonaro deve aumentar o número de acidentes, incapacitando temporária ou definitivamente trabalhadores, ou levando-os a óbito. Consequentemente, as alterações vão ampliar os gastos públicos com atendimento médico, aposentadorias por invalidez e pensões por morte – indo na contramão do discurso do próprio governo, de que é necessário fazer sacrifícios em nome da Reforma da Previdência. Essa é a avaliação de especialistas ouvidos pelo blog a respeito do projeto encaminhado ao Congresso, na terça (4).

Entre as propostas do governo, estão aumentar o limite de 20 para 40 pontos na carteira de habilitação, acabar com a penalização financeira para quem não usar as cadeirinhas para transportar bebês e crianças, e amenizar a categoria das infrações cometidas por motociclistas – como não usar capacete com proteção para o rosto.

"Vão chegar mais indivíduos politraumatizados em nossos hospitais, que precisarão de cirurgias, UTIs, internação. Alguns vão morrer, outros terão alta com sequelas, necessitando de cuidados. Ou seja, vamos ter aumento no custo do SUS e nos custos previdenciários", afirma o médico Dirceu Rodrigues Alves Júnior, diretor da Associação Brasileira de Medicina de Tráfego (Abramet).

As famílias dos trabalhadores mortos em acidentes recebem pensões. Quem ficou incapacitado temporária ou definitivamente também tem direito a auxílios, desde que tenham contribuído para o regime geral ou a previdência dos funcionários públicos. Já os incapacitados permanentemente que não contribuíam têm direito a solicitar o Benefício de Prestação Continuada (BPC) para pessoas com deficiência, caso se enquadrem em situação de miséria – renda per capita mensal inferior a R$ 249,50.

Parte dos motociclistas que trabalham com entregas, entre outras categorias de condutores de veículos, são microempreendedores individuais (MEI), ou seja, possuem empresas pessoais. Com isso, tem direito a benefícios previdenciários e aposentadoria pelo INSS, desde que recolham 5% do salário mínimo por mês.

"De um lado, o ministro da Economia preocupado com o problema previdenciário, do outro, uma proposta que vai pressionar ainda mais essa conta", avalia Alves Júnior. Segundo ele, R$ 52 bilhões são perdidos com acidentes de trânsito todos os anos, com cerca de 40 mil mortos e 160 mil pessoas incapacitadas temporariamente ou em definitivo.

Sistema Único de Saúde

Carlos Henrique Ribeiro de Carvalho, que coordenou estudos sobre a estimativa dos custos dos acidentes de trânsito pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), diz que mudanças como essas dão um sinal de que o poder público está afrouxando a legislação e a fiscalização, quando as medidas deveriam seguir no sentido contrário.

Apenas os custos de atendimento, que envolvem sistemas de emergência e gastos com o tratamento hospitalar e com a recuperação pós-alta, incluindo reabilitação, respondiam por cerca de 20% desse montante em 2016, de acordo com Carvalho, ou seja, R$ 10 bilhões. Ele lembra que o primeiro atendimento em acidentes é feito pelo serviço público, mesmo que depois o paciente seja transferido para uma instituição privada. Ou seja, bancado por parte do Estado.

O blog conversou com um profissional do Samu (Serviço de Atendimento Móvel de Urgência) que afirmou que a mudança vai piorar, e muito, a qualidade do atendimento de emergência. "O Samu não salva ninguém, ele viabiliza a vida de quem é viável. Com as mudanças, pessoas que têm chance de viabilidade terão óbito na cena, pois o sistema já não dá conta de atender todo mundo. Isso é abrir um território de luta livre no trânsito. Com o aumento dos casos, vai morrer mais gente."

Ele, que pediu para não ser identificado, traduz o que isso significa em histórias: "Já atendi criança arremessada de um carro em um acidente porque estava sem cadeirinha. Ela voou, literalmente. Em um capotamento, não tem a menor chance de sobrevivência. Em outro caso, uma mãe que levava o filho no banco de trás sem cadeirinha bateu em um caminhão e ele teve rompimento do pâncreas. Acabei de atender um caso de uma menina de 16 anos que pegou carona voltando de uma balada e morreu no local do acidente. Havia seis pessoas no carro e, portanto, ela estava sem cinto. Como seria o caso de uma cadeirinha, com uma criança solta no banco de trás", relata o profissional do Samu.

Uma criança que usava cadeirinha não se machucou em acidente que deixou quatro pessoas feridas em Oscar Bressane (SP), de acordo com a polícia. Foto: Reprodução/TV TEM

Motociclistas

Por conta do preço mais acessível que um carro e do aumento de poder de consumo da população de renda mais baixa ao longo dos anos, as motocicletas dispararam em vendas. E, com isso, cresceu o número de acidentes. De acordo com o relatório sobre o ano de 2018 da Seguradora Líder, administradora do seguro-obrigatório DPVAT, as motos foram os veículos com o maior número de indenizações no ano passado. "Apesar de representar apenas 27% da frota nacional, concentrou 75% das indenizações pagas. Dos pagamentos do período para acidentes com motocicletas, 74% foram para invalidez permanente e 8% para morte", diz o documento.

Carvalho lembra que o principal custo dos acidentes é a perda de produção, com jovens que morrem ou se tornam incapazes para o trabalho muito cedo. Essas complicações permanentes pressionam por despesas previdenciárias de longa duração.

De acordo com dado do DPVAT, a maioria das indenizações a vítimas de acidentes envolvendo motos, no ano passado, era destinada a homens (88% das indenizações pagas por mortes com motos e 79% por invalidez permanente) e tinham entre 18 e 34 anos (49% dos acidentes fatais e 53% dos casos com sequelas permanentes). Jovens em motos, que trazem nossas refeições e realizam nossas entregas rápidas nas grandes cidades. Ou conduzem serviços de mototáxi, principalmente, no interior do país.

O projeto também ignora que o custo de prevenção é menor que o gasto com o tratamento e a manutenção das vítimas. O diretor da Abramet, critica a proposta que estende de cinco para dez anos o prazo de validade da carteira de motorista. De acordo com ele, 12% dos que morreram no trânsito tiveram óbito em função de doença enquanto dirigiam. Ou seja, não foi a colisão em si que provocou a morte, mas algum problema decorrente de hipertensão, doenças neurológicas, diabetes que gerou o acidente.

"O exame médico para renovação da carta é periódico com o objetivo de detectar incapacidades para essa atividade ou de encaminhar o motorista para tratamento a fim de controlar o problema. Se eu saio de cinco para dez anos, estou abandonando a saúde dessa pessoa", explica Alves Júnior.

Previdência Social 

Além disso, se a proposta de Reforma da Previdência do governo Bolsonaro for aprovada, parte dos acidentados e suas famílias, após a sua reforma do Código de Trânsito Brasileiro, terão um suporte menor por parte do Estado.

De acordo com o projeto, pensões pagas a viúvas e órfãos passarão a ser de 60% do valor do benefício, acrescidas de 10% para cada dependente adicional até 100%. Com isso, abre-se a possibilidade para receber pensões de até 60% de um salário mínimo. Hoje, o valor é integral.

Além do mais, a reforma também substitui o conceito de aposentadoria por invalidez permanente pelo o de incapacidade permanente para o trabalho. Hoje, se o trabalhador segurado for incapaz de trabalhar e já contribuiu por 20 anos para o INSS, ele receberá 100% da média salarial das maiores remunerações. Após a reforma, a mesma pessoa receberia 60% da média de todos os salários e o valor aumentaria 2% para cada ano a mais.

As exceções são benefícios por morte por acidente de trabalho e doenças profissionais, que seriam integrais. Mas, ainda assim, com um valor menor que hoje, pois consideraria a média de todas as contribuições.

"Você tem uma nova política de trânsito que vai ampliar a invalidez e uma nova política previdenciária que vai restringir o acesso à aposentadoria por invalidez", afirma Eduardo Fagnani, professor do Instituto de Economia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e pesquisador do Centro de Estudos Sindicais e do Trabalho.

"Esse projeto de lei não nos parece ter sido feito por pessoas esclarecidas e ligadas à Saúde, com a necessidade de manter vidas e melhorar qualidade de vida. Não vemos benefício para o trabalhador e para a sociedade como um todo. Um descaso com a Previdência", afirma o diretor da Associação Brasileira de Medicina de Trafego.

Por fim, caso o governo não deseje ouvir especialistas que lidam com o dia a dia dos acidentados no trânsito, poderia escutar sua própria equipe econômica. Pelo menos, o que ela já afirmou no passado.

"Quem mais gasta com acidentes de veículos é a Previdência Social."

A frase não é da oposição a Bolsonaro no Congresso Nacional, mas de Leonardo Rolim, secretário de Previdência do Ministério da Economia em entrevista ao jornal Valor Econômico, em janeiro de 2014, quando era secretário de Políticas de Previdência Pública do então Ministério da Previdência.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.