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Leonardo Sakamoto

Não é só Bolsonaro. Nosso padrão de consumo ajuda a derrubar a Amazônia

Leonardo Sakamoto

11/08/2019 23h51

Foto: Daniel Beltra/Greenpeace

O governo Bolsonaro está rifando a qualidade de vida desta e das futuras gerações com o seu comportamento predatório com relação ao meio ambiente. Para tanto, menospreza a ciência, enfraquece a fiscalização, difama populações tradicionais, abraça o naco anacrônico do agronegócio e deixa claro que o combate a crimes ambientais deixou de ser prioridade, enquanto apoia legislação sobre o tema que faria inveja à da ditadura. Na narrativa conspiratória do governo, quem critica o pacote "terra arrasada" não é patriota, quem aponta desmatamento é um traidor, quem fala de outras formas possíveis de crescer em respeito ao meio é um entreguista. E enquanto denuncia uma suposta trama internacional contra a Amazônia, o próprio presidente próprio sugere "abrir para Donald Trump explorar a região amazônica em parceria".

Vai muito, mas muito além do ex-presidente Michel Temer que, para manter no poder seu grupo político denunciado por corrupção, fez a vontade de uma parte retrógrada do setor produtivo e do Congresso Nacional. A proposta de redução da proteção na Floresta Nacional do Jamanxim, no Pará, ou o ataque direito aos direitos de populações indígenas a seus territórios (que apresentam, em média, taxas de conservação maiores que as unidades sob responsabilidade direta do governo) foram exemplos disso. Isso sem falar na polêmica envolvendo a Reserva Nacional do Cobre e Associados (Renca).

Também não é novidade que Dilma Rousseff não morria de amores pela questão ambiental. Um dos maiores crimes cometidos contra a Amazônia, seus povos e trabalhadores em nossa história recente responde pelo nome de usina hidrelétrica de Belo Monte, menina dos olhos da ex-presidente. Comunidades indígenas e ribeirinhas impactadas e deslocadas, trabalhadores mortos, tráficos de pessoas para exploração sexual a fim de atender aos canteiros de obras, criação de novos vetores de desmatamento, ocupação desordenada do solo urbano e rural, tudo contribuindo para mudanças climáticas. Ironicamente Dilma estava ao lado de um modelo de desenvolvimento predatório e violento que foi levado a cabo durante a ditadura contra a qual ela lutou.

Poderíamos citar todos os mandatários da Nova República e dar especial ênfase aos ditadores entre 1964 e 1985 nessa lista suja. Mas o que as pessoas esquecem é que esse modelo de terra arrasada serve para abastecer um padrão de consumo, vendido em publicidades brilhantes, propagandas excitantes e merchands delirantes, que nós engolimos bovinamente, sem questionar.

Sim, a panela de alumínio (com a qual muitos resumem sua participação na vida pública) bebeu energia e comeu minerais extraídos da Amazônia brasileira. Sim, muitos bens de consumo têm em seu custo o desaparecimento de aldeias indígenas e o desmatamento ilegal.

De onde você acha que vem o aço de nossos automóveis? E o couro dos estofados? E a madeira utilizada no processo de construção de nossas casas e apartamentos? E a carne que comemos diariamente? E a soja que está em muitos de nossos produtos industrializados e na ração de outros animais? E o dendê do biodiesel? E o ouro dos circuitos eletrônicos? Nem todos são produzidos de forma danosa ao meio e ao ser humano, claro, mas muita coisa vem sem controle algum.

Do que adianta não questionar os padrões de comportamento ao qual todos nós – e não me excluo desse coletivo – estamos inseridos e depois colocar uma foto nas redes sociais do tipo "SOS Amazônia"? Você busca se informar sobre o impacto de seu consumo e, a partir daí, questionar os fornecedores de seus produtos preferidos?

Muitos defendem a mudança no comportamento da sociedade para combater a destruição do meio ambiente, mas, no sigilo do carrinho de supermercado, continuam comprando um produto mesmo sabendo que ele está envolvido em danos ambientais. Autointulam-se ecoconscientes, porque é bonito e pega bem, mas sustentam uma pegada ecológica do tamanho de um mundo.

Não querem mudanças no modelo de desenvolvimento que impactariam nosso "American Way of Life" importado, apenas reciclam latinhas de alumínio e dão três descargas a menos no vaso sanitário por dia. E, pior, acreditam em promessas sem lastro, só por um discurso bonitinho, mas completamente ordinário, que não vale o esterco em que são adubadas em tempos de eleições.

Dessa forma, seguimos nossa cruzada em prol do desenvolvimento a todo o custo. Para produzir e, assim, exportar, gerar divisas, pagar juros de empréstimos, e assim poder contrair mais empréstimos e investir na produção. Não sem antes destruir outro lugar e outra comunidade. Que pode ser indígena, mas também ribeirinha, camponesa, quilombola, caiçara ou mesmo moradores da periferia de grandes cidades.

Isso não se resume a um boicote, que é instrumento muito importante de pressão e alerta, mas não resolve problemas estruturais. Precisamos fazer acompanhamento crítico de nosso consumo no cotidiano. Porque consumir é um ato político. Quando você compra algo, está depositando seu voto na maneira como aquele produto foi feito, não apenas em sua estética, mas também em sua ética. Criticamos com desenvoltura nas redes sociais a forma como acontece a política, mas não criticamos a maneira como produtos são feitos. Exigimos mudanças nessa mesma política, mas não alterações profundas no processo de produção. Por quê?

Como já disse aqui antes, isso não é um chamado à culpa, o que não levaria a nada. E só podemos defender consumo consciente se, antes, ajudarmos a população a se informar sobre o que acontece. Atuo com a investigação de cadeias produtivas do agronegócio e do extrativismo desde 2003, tendo coordenado o rastreamento de mais de 1,7 mil unidades produtivas. Ao mesmo tempo, tenho um doutorado exatamente sobre esse tema. Isso não me torna autoridade de nada, mas me permite dar meu testemunho pessoal: a mudança é lenta, muito lenta, mas possível. Há muita gente boa e dedicada envolvida nisso: empresários, ativistas, procuradores, políticos, professores, jornalistas, economistas, cidadãos.

Isso é um lembrete que todos temos responsabilidade, uns mais outros menos. A nossa, claro, é menor do que a dos governos e de empresários do agronegócio, do extrativismo, da indústria, do varejo e do sistema financeiro. Mas temos um papel a cumprir, preferindo políticos e produtos que atuam em nome da qualidade de vida e excluindo do rol de possibilidades quem não se importa com o meio e as pessoas que nele vivem. Lembrando que não há debate possível que não passe por repensar o próprio capitalismo.

Lutar contra a pilhagem da Amazônia, do Cerrado e do Pantanal é difícil, porque aprendemos a gostar do conforto das coisas a um preço baixo. Mas a luta é necessária.

Pois, não raro, alguém, a milhares de quilômetros de onde moramos, está pagando um preço muito alto pela nossa alegria.

(Este texto é uma atualização de outro publicado há dois anos, quando muitos achavam que caminhávamos para o fundo do poço com relação ao desenvolvimento sustentável sem saber que, por lá, havia um alçapão.)

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.