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Leonardo Sakamoto

No Rio, governador quer lucrar com tragédia, e policial cumpre seu dever

Leonardo Sakamoto

20/08/2019 12h43

Foto: Ricardo Cassiano/Agência O Dia/Estadão Conteúdo

O sequestrador de um ônibus na ponte Rio-Niterói foi morto por um atirador de elite do Batalhão de Operações Especiais (Bope), na manhã desta terça (20), e os 37 reféns liberados sem ferimentos. Segundo a Polícia Militar, ele portava uma arma de brinquedo e ameaçava incendiar o veículo com gasolina.

Ao que tudo indica, com as informações à disposição, o policial cumpriu o seu dever para evitar o pior.

Tiro fatal deve ser a última opção, não a primeira. A análise dos procedimentos dirá se haveria a possibilidade de ter desarmado o sequestrador sem óbito e se a vida de inocentes foi colocada em risco. Por que a preocupação? Para futuras operações. Porque uma polícia que atira para matar como principal recurso parece eficaz, mas não é.

Não se deseja sequestros e pessoas baleadas. Nem que pessoas sejam abatidas, cidadãos, policiais, assaltantes. Todas as mortes são lamentáveis. Aliás, apenas psicopatas gostam de ver mortes de outras pessoas. Mas nem sempre é possível garantir isso. O caso no Rio é uma tragédia, em todos os sentidos, que não deveria ser celebrada.

Contudo, a imagem do governador do Estado, Wilson Witzel, chegando de helicóptero na ponte após o desfecho da operação, com o objetivo de capitalizar a tragédia para si, é uma das cenas mais deprimentes de um ano cheio de cenas deprimentes. Ele até deu pulinhos e festejou de braços abertos, como se fosse uma final de campeonato de futebol. Atrás dele, alguém corria com um celular na mão, provavelmente gravando a cena.

Witzel tem sido um dos defensores do uso de snipers em comunidades pobres com o objetivo de abater suspeitos de forma preventiva. Considerando que, não raro, a polícia acerta indiscriminadamente bandidos e inocentes, adultos e crianças, homens e mulheres, todos quase sempre negros, a adoção dessa política traria apenas mais mortes sem reduzir necessariamente a criminalidade. O ato de hoje vai ser combustível para esse discurso e o governador vai fazer de tudo para que esse não pareça um caso isolado do restante que acontece no Rio.

Após a cena protagonizada por Witzel, as redes sociais foram invadidas por pessoas exigindo julgamentos sumários, pedindo carta branca para que agentes públicos assumam o papel de policial, promotor, juiz e carrasco. Para elas, chega de julgamentos longos e com chances dos "canalhas" se safarem ou de "alimentar bandido" em casas de detenção. Execute-os com um tiro, de preferência na nuca para não gastar muita bala, e resolve-se tudo por ali mesmo. Limpem a urbe. Para muita gente, execuções sumárias são lindas, sejam feitas pelas mãos da população, sejam pelas do próprio Estado, ao caçar traficantes em morros cariocas ou na periferia da capital paulista.

Outras tantas mensagens aproveitam para clamar que todo cidadão comum receba uma arma para reagir da mesma forma. O que é um atestado de ignorância, por desconsiderar que policiais, ao contrário da massa, recebem longo treinamento para reagir a situações-limite.

De tempos em tempos, a violência causada pelo crime organizado retorna com força ao noticiário, normalmente no momento em que ela desce o morro ou foge da periferia e no, decorrente, contra-ataque. Neste momento, alguns aproveitam a deixa para pedir a implantação de processos de "limpeza social" e de execuções sumárias. Na esteira disso, o caminho se abre a outro tipo de bandido, os milicianos – criminosos que caçam outros criminosos. Por serem formados, em sua maioria, por agentes das forças de segurança, contam com o complacência de parte do poder público. Até são homenageados, como fez o então deputado estadual e, hoje, senador Flávio Bolsonaro.

O que aconteceu na ponte Rio-Niterói foi, muito provavelmente, causado por alguém com distúrbios mentais. Mas será usado para justificar o terrorismo de Estado do atirar primeiro e perguntar depois. Deixando cada vez mais de lado a busca por mudanças estruturais na forma como os serviços públicos alcançam a população e como são gerados empregos para que os mais jovens não caiam na rede do tráfico.

Ao celebrar o caso, o governador passa a mensagem de que tal ato não deveria ser uma exceção, mas algo a ser repetido. Ignora que a melhor forma de celebrar a polícia seria aumentar salários, dar melhores condições de trabalho, mais treinamento e formação especializados e bons equipamentos aos agentes – que são obrigados a morrer em nome de uma sociedade que nem sempre reconhece os serviços de uma maioria de servidores honestos.

Novamente, para quem desligou o cérebro: ninguém está defendendo o crime, muito menos sequestradores, ladrões e traficantes – defendo o fim da política fracassada de guerra às drogas como parte do processo de enfraquecimento do crime, mas isso é outra história. A questão aqui não é o sequestrador da ponte, mas a narrativa que será construída em nome dele.

Boa parte da população, apavorada pelo discurso do medo, mais do que pela violência em si, tem adotado a triste opção de ver o Estado de direito com nojo. O que anos de políticos imbecis, apresentadores de TV exagerados e estruturas ultraconservadoras de igrejas têm pavimentado dificilmente será desconstruído.

Se alguém morre ou alguém vive não é por culpa do capeta ou graças a Deus. Por isso, desejo tanto que o Estado funcione aqui e agora, punindo culpados, de acordo com o Código Penal, e prevenindo as origens da criminalidade, de acordo com a Constituição. O que está em jogo aqui é que tipo de sociedade que construímos ao ver nossos governantes defenderem Justiça sem o devido processo legal.

Em tempo: Falando em eficácia de forças de segurança, ainda espera-se uma desculpa formal tanto do presidente Jair Bolsonaro quanto do governador Wilson Witzel sobre a execução do músico Evaldo Rosa dos Santos e do catador de materiais recicláveis Luciano Macedo, em Guadalupe, Zona Norte do Rio de Janeiro, em abril deste ano, por militares que atuavam na segurança pública. Evaldo foi morto quando o carro em que estava com a família indo para um chá de bebê foi cravado de balas ao ser confundido com outro. Já Luciano foi atingido quando tentava ajudar a família do músico que estava no veículo (e sobreviveu), morrendo 11 dias depois. Por que os helicópteros não passaram por lá para garantir que os culpados seriam punidos? Estavam de férias em Angra ou no casamento de um filho em Santa Teresa?

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.