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Leonardo Sakamoto

Bolsonaro entregou de bandeja a desculpa para barreira comercial ao Brasil

Leonardo Sakamoto

23/08/2019 16h58

FotoL: Ueslei Marcelino/Reuters

Ao falar do rebu internacional que brotou a partir das cinzas das queimadas na Amazônia, o general Eduardo Villas Bôas, ex-comandante do Exército e assessor do Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República, postou uma sequência de tuítes em sua conta na rede social com críticas ao francês Emmanuel Macron, pelo que considerou uma afronta à soberania brasileira sobre a região. Mas que, veja só, também se encaixavam no comportamento de Bolsonaro.

"A questão ultrapassa os limites do aceitável na dinâmica das relações internacionais. É hora do Brasil e dos brasileiros se posicionarem firmemente diante dessas ameaças, pois é o nosso futuro, como nação, que está em jogo. Vamos nos unir em torno daqueles que têm procurado trazer à luz a verdade sobre essas questões ambientais e indigenistas."

Considerando que o presidente brasileiro tem afrouxado os instrumentos de fiscalização e controle, atacado cientistas que cuidam do monitoramento da floresta e proferido de forma irresponsável discursos permissivos que levaram pecuaristas, madeireiros e garimpeiros a terem certeza da impunidade de uma Casa da Mãe Joana, o que levou a um salto no desmatamento, há muita gente em todo o mundo que acredita que a maior ameaça hoje responde pelo nome de Jair Bolsonaro. E com uma boa dose de razão.

Qualquer tamanduá-bandeira em pânico por estar preso em uma clareira rodeada por chamas no interior do Pará sabe que ele e seu governo entregaram de bandeja a desculpa necessária para a imposição de barreiras comerciais tarifárias e não-tarifárias aos produtos brasileiros.

Soa, portanto, rasa a explicação dada por sua equipe, de que há interesses econômicos e protecionismo por trás do discurso de indignação ambiental, pois isso não é novidade. A explicação serve, provavelmente, para que o governo brasileiro não perca aliados dentro e fora do país. Contudo, para quem sabe que a economia global não é uma grande comunidade de Ursinhos Carinhosos em que as pessoas se juntam apenas pelo que é bom e belo, ter que ouvir o governo repetir essa obviedade dói.

Ao mesmo tempo, membros do governo estão apelando para justificativas infantis do tipo: o outro país desmatou mais, poluiu mais, matou baleias, espancou unicórnios. Isso pode ser historicamente verdade, mas não importa diante do fato do mundo já estar sofrendo os efeitos da mudança climática. E importa menos ainda agora, no meio do furacão. Afinal, o tamanduá-bandeira supracitado sabe que ele é a bola da vez e o fogo está chegando perto. Independentemente de quem começou a estragar o planeta, é ele e parte dos agroexportadores brasileiros que estão na merda neste momento. Enquanto isso, o presidente, em seu universo paralelo particular, deve pensar "Grande Dia" diante da balbúrdia que ajudou a causar.

No dia 20 de junho, Bolsonaro disse: "o que eles querem, o pessoal lá de fora, e alguns traidores aqui dentro, é fazer com que a Amazônia seja internacionalizada. Enquanto eu for presidente, pode ter certeza que não será". Ironicamente, enquanto denunciava uma suposta trama contra o país, convidava outros chefes de Estado para explorar a região, como o primeiro-ministro japonês e o presidente norte-americano. Em abril, por exemplo, afirmou que ofereceu "abrir para Donald Trump explorar a região amazônica em parceria". Ou seja, ao mesmo tempo em que é tigrão com organizações da sociedade civil e movimentos sociais nacionais e estrangeiros, é gatinho com governos e empresas estrangeiros.

Ao recuperar indiretamente o lema da ditadura do "integrar para não entregar", o governo não conta que a região já está integrada ao sistema global. Já foi internacionalizada. Desde o período militar, está conectada aos centros do capitalismo nacional e mundial através de cadeias produtivas que exploram recursos naturais, mão de obra e energia – o que não significou, necessariamente, melhora na qualidade de vida de populações tradicionais, camponeses e trabalhadores rurais.

Pelo contrário, tá aí a floresta sendo tombada, a vegetação ardendo em chamas, ar e cursos d'água contaminados, indígenas sendo removidos à força, cinturões de pobreza nas cidades. A Amazônia é o bioma recordista em libertações de pessoas escravizadas na produção agropecuária e extrativista.

A princípio, governos estrangeiros não precisam do esforço de controlar uma região do tamanho da Amazônia. Para que ter o trabalhão de tomar conta daquela bagunça fundiária se as riquezas já fluem para fora por caminhões, estrada de ferro, porões de navio ou linhões de transmissão de energia?

Como já disse aqui, Bolsonaro incorre em um comportamento comum de governantes que acreditam que o termo "internacionalização" vale apenas para a presença de governos e sociedade civil, nunca para multinacionais. Mas o que seria deste governo sem teorias da conspiração? Para começar, teria que cobrar a responsabilidade dos impactos causados por seus aliados ruralistas na região sem jogar a culpa apenas no estrangeiro.

É claro que existem organizações não-governamentais picaretas. Até porque ONG é uma categoria que engloba toda pessoa jurídica que não é empresa ou governo – de igrejas, passando por times de futebol, museus até associações civis sem fins lucrativos. Mas, da mesma forma, existem empresas e governos desqualificados.

O que leva à pergunta: quando o próprio governo se omite diante do comportamento irresponsável de setores da iniciativa privada nacionais ou estrangeiros ou é ele mesmo perpetrador de crimes, cidadãos não podem contar com a ajuda externa de ninguém só porque existe uma teia global de interesses?

Para o governo, quem defende desenvolvimento sustentável e o direito das populações tradicionais frente ao crescimento econômico sem limites está mancomunado com o interesse protecionista dos estrangeiros e age de má fé. Ou é ingênuo e não percebe que está sendo usado pelo inimigo. Nada sobre uma terceira opção: pessoas podem discordar da forma como é alcançado o crescimento e que acreditam que o sucesso econômico sem garantir dignidade não nos serve e está fadado ao fracasso.

O Brasil vai alcançar seu ideal de nação não quando for o celeiro do planeta, mas no momento em que seus filhos e filhas tiverem a certeza de que não serão expulsos de suas comunidades para dar lugar a plantações e hidrelétricas. Que não serão escravizados em fazendas gerando lucros no altar da competitividade. Que não precisarão cruzar os dedos para que o clima não enlouqueça e um morro deslize sobre sua casa ou seu carro. Que não serão assassinados por serem da "etnia errada". Que não terão sua vida transformada em um inferno devido à ação ou às palavras de seu próprio presidente.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.