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Leonardo Sakamoto

Quantas mortes de Ágathas ficariam impunes com o pacote anticrime de Moro?

Leonardo Sakamoto

19/11/2019 10h56

O inquérito da Polícia Civil que investiga a morte da estudante Ágatha Félix, de oito anos, aponta que o disparo partiu de um cabo da PM. O objetivo seria dar um "tiro de advertência" para uma dupla que passava de moto, mas ele acabou acertando a menina que voltava com a mãe para casa em uma lotação no Complexo do Alemão, Rio de Janeiro, no dia 20 de setembro.

(Antes de prosseguir, vale lembrar a quantidade de "delegados de internet" que gritaram "fake news" diante da linha de investigação que apontava que o disparo não havia partido de traficantes, mas de agentes de segurança.)

Relatos de testemunhas incluídos no inquérito afirmam que o cabo estava sob forte tensão devido à morte de um colega três dias antes e, por isso, teria confundido uma esquadria de janela carregada por um homem na garupa de uma moto com uma arma. Não é exatamente novidade, considerando que a polícia do Rio de Janeiro já confundiu guarda-chuva com fuzil.

Imaginem, agora, se o pacote anticrime do ministro da Justiça e Segurança Pública, Sérgio Moro, fosse aprovado em sua totalidade. Ele propõe alterações no artigo 23 do Código Penal, que trata da exclusão de ilicitude: "não há crime quando o agente pratica o fato: em estado de necessidade; em legítima defesa; em estrito cumprimento de dever legal ou no exercício regular de direito. Hoje, prevê-se que "o agente, em qualquer das hipóteses deste artigo, responderá pelo excesso doloso ou culposo". A proposta acrescenta que "o juiz poderá reduzir a pena até a metade ou deixar de aplicá-la se o excesso decorrer de escusável medo, surpresa ou violenta emoção." 

Quantas mortes de Ágathas sairiam impunes por conta de "escusável medo, surpresa ou violenta emoção" de policiais?

O grupo de trabalho que analisa o pacote no Congresso Nacional já vetou essa mudança, o que aumentaria consideravelmente a letalidade das forças policiais – terrível não só para a população de comunidades pobres, hoje transformadas em praças de guerra, mas também para a vida dos próprios policiais, uma vez que isso tornaria os conflitos com o tráfico ainda mais violentos.

Moro não pode levar o crédito sozinho pela ideia genial, uma vez que ele estava alinhado a seu chefe. Durante toda sua carreira política, Bolsonaro defendeu o relaxamento de regras para agentes de segurança. Por exemplo,  em 14 dezembro de 2017, afirmou: "Se alguém disser que quero dar carta branca para policial militar matar, eu respondo: quero sim. O policial que não atira em ninguém e atiram nele não é policial. Temos obrigação de dar retaguarda jurídica a esses bravos homens que defendem nossa vida e patrimônio em todo Brasil". No dia seguinte, diante da repercussão negativa, afirmou que foi mal compreendido: "eu não quero dar carta branca pro policial matar, eu quero dar carta branca pro policial não morrer. E, se para não morrer, tem de matar, que faça o seu serviço".

É justo que o poder público se preocupe com a vida de policiais – que não nasceram como máquinas de matar, mas são empurrados a proteger o patrimônio dos que muito têm, contendo a vida dos que nada possuem, sendo mal tratados e mal remunerados para isso.

A questão é: e a carta branca para que crianças como Ágatha continuem vivendo? Alguém vai dar?

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.