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Leonardo Sakamoto

Paraisópolis: Há um Brasil defendendo que festas sejam caladas com sangue

Leonardo Sakamoto

02/12/2019 18h55

Moradores protestam contra ação da PM em Paraisópolis. Foto: Marlene Bergamo/Folhapress

Três declarações de autoridades negando a realidade vieram a público, nesta segunda (2), mostrando que este imenso Brasil segue triunfante em direção ao terraplanismo social.

"O rock ativa a droga, que ativa o sexo, que ativa a indústria do aborto. A indústria do aborto por sua vez alimenta uma coisa muito mais pesada que é o satanismo. O próprio John Lennon disse que fez um pacto com o diabo."

O comentário é de Dante Mantovani, novo presidente da Funarte, do governo Jair Bolsonaro, responsável por fomentar o desenvolvimento artístico nacional.

"Livros didáticos estão cheios de músicas de Caetano Veloso, Gabriel O Pensador, Legião Urbana. Depois não sabem por que está todo mundo analfabeto."

E este é de Ricardo Nogueira, novo presidente da Biblioteca Nacional, também do governo Bolsonaro, responsável por garantir o patrimônio de um dos maiores acervos documentais do mundo.

"A letalidade não foi provocada pela Polícia Militar, e sim por bandidos que invadiram a área onde estava acontecendo o baile funk." "A política de segurança pública do Estado de São Paulo não vai mudar."

E essas declarações são do governador de São Paulo, João Doria Jr, que negou responsabilidade da PM pelos nove jovens mortos após ação da corporação na favela de Paraisópolis, durante um baile funk que reunia 5 mil pessoas, na madrugada deste domingo.

As duas primeiras foram listadas entre os assuntos mais falados do dia nas redes sociais, talvez pelos disparates que representam serem mais escrachados. A terceira, contudo, a mais absurda de todas, pois isenta a polícia do envolvimento na morte de jovens negros e pobres da periferia, não teve a mesma repercussão.

A principal causa de morte violenta de jovens na cidade de São Paulo, nos últimos anos, tem sido a polícia, seguida de acidentes de trânsito e, só depois, os homicídios comuns, de acordo com Samira Bueno, diretora-executiva do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

Mas quem se importa? Antes, pacotes de mortes como essas chocavam a ponto de criar constrangimento em governos. Agora, parte da população bate palmas nas redes sociais, defendendo que o barulho de uma festa seja silenciado com sangue. Afirmando que, se os nove foram mortos pela polícia, é porque algo de errado estavam fazendo. O padrão mudou é a vítima se tornou a principal suspeita. O valor da vida é medido em decibéis.

Como já disse aqui antes, vivemos a "Era do Foda-se". Sabe aquele esforço para se preocupar com as consequências das próprias ações e palavras e, no mínimo, manter as aparências? Então, ele se aposentou ou tirou férias, mandando avisar que só dá as caras quando a democracia plena voltar ao Brasil. Até lá, cada autoridade ou membro da elite econômica e política deste país pode falar ou fazer o que quiser, sem medo da repercussão negativa junto à população. Até porque, convenhamos, foda-se.

Alguns dizem que isso vai gerar uma transparência sem igual na sociedade que nos levará a um patamar superior da existência no futuro e o melhor é tudo acontecer à luz do dia ao invés de se passar nos porões das casas 58 ou 66 de um condomínio na Barra da Tijuca. Há uma falsa dualidade nessa história.

Ricardo Augusto de Mello Araújo, ao assumir o comando da Rota, tropa da PM paulista, em 2017, assumiu que não era possível abordar pessoas da periferia e em bairros nobres da mesma forma. "É uma outra realidade. São pessoas diferentes que transitam por lá. A forma dele abordar tem que ser diferente. Se ele [policial] for abordar uma pessoa [na periferia], da mesma forma que ele for abordar uma pessoa aqui nos Jardins, ele vai ter dificuldade. Ele não vai ser respeitado", explicou ao repórter Luís Adorno, do UOL. "Da mesma forma, se eu coloco um [policial] da periferia para lidar, falar com a mesma forma, com a mesma linguagem que uma pessoa da periferia fala aqui no Jardins, ele pode estar sendo grosseiro com uma pessoa do Jardins que está ali, andando."

O problema é que, para muita gente, não é mais chocante ver um comandante afirmar que o policial deve se adaptar ao lugar em que está. Claro que isso não é novidade para qualquer jovem negro e pobre da periferia que, não raro, é suspeito por ser negro e pobre da periferia. Mas a sociedade não pode naturalizar esse tipo de comportamento, da mesma forma que deveria refletir sobre o significado de empatia antes de postar que os jovens em Paraisópolis tiveram o que mereciam.

Seria necessária nova pactuação política e social, aliada a muito suor em articulações para a construção de novos consensos que vençam o imobilismo do "foda-se" visando à construção de um Estado e de uma polícia que encare todos como iguais. A dúvida é se, diante de todo o esgarçamento institucional que vivemos, as pessoas não ligaram o Modo de Sobrevivência, no qual é cada um por si e o sobrenatural por todos.

Eu diria "Que Deus nos ajude" diante disso. Mas Jeová, se realmente for a imagem e semelhança de seu povo, deve estar ocupado com um policial que invadiu sua casa sem mandado.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.