Ainda bem que é o coelho (e não a indústria) que produz o chocolate
Leonardo Sakamoto
31/03/2013 17h28
A Páscoa, como todos sabemos, é o dia em que celebramos o surgimento do primeiro espécime ovíparo de coelho que metaboliza cenoura em chocolate. Dizem que judeus e cristão deram outro significado para a data, provavelmente querendo pegar uma onda na milenar tradição criada pelo comércio. Mas dada a quantidade de ovos pendurados nos mercados desde janeiro, quem acreditaria que a data significa algo mais?
Como os coelhos mutantes têm dificuldade de fazer tudo sozinho, a indústria dá uma ajudinha. Produz-se cacau não apenas nas locações das novelas das 21h da Globo e em outras fazendas na Bahia, mas também em locais mais distantes da praia, como o interior do Pará.
Nesse estado amazônico, temos experiências de cultivo inclusivo, feito por pequenos produtores, como aqueles do Projeto de Desenvolvimento Sustentável (PDS) Esperança, em Anapu – pelo qual viveu e morreu a irmã Dorothy Stang. De acordo com o procurador da República Felício Pontes, esse programa é um oásis em meio à pobreza local formada por grandes extensões de pasto e gado raquítico, mostrando que é possível garantir qualidade de vida à população e desenvolvimento econômico ao país, de forma pacífica, com respeito aos recursos naturais. As famílias que produzem o cacau, orgânico, estão formando uma cooperativa. Já quem está trabalhando com gado e desmatamento na região está na miséria.
Mas também temos casos, no mesmo estado, em que o couro dos trabalhadores não foi poupado.
Como a publicidade elegeu, mais uma vez, as crianças como protagonistas desta data, quem sou eu para retrucar? Contarei, portanto, um historieta.
Uma ação de fiscalização de trabalhadores do governo federal libertou, há alguns anos, 150 pessoas em Placas (PA), dentre elas mais de 30 crianças. A região sofre o impacto da expansão agropecuária e extrativista e da baixa presença do poder público para efetivar os direitos fundamentais. O grupo estava sujeito a condições degradantes de habitação, alimentação e higiene. De acordo com o Ministério do Trabalho e Emprego no estado, a maior parte das crianças estava doente, com leishmaniose ou úlcera de Bauru. Elas eram levadas ao trabalho para aumentar a remuneração, se sujeitando a todo tipo de situação. Tanto que uma delas perdeu a visão ao cair de cara em um toco de árvore.
Os libertados, que atuavam na lavoura de cacau, já começacam o serviço devendo aos empregadores por terem que pagar equipamentos de trabalho e bens de necessidade básica. De acordo com as informações colhidas pelos fiscais, quem não cumpria as determinações dos patrões era ameaçado de morte.
Parte da indústria de alimentação que compra não só cacau, mas também outras matérias-primas de setores que vêm sendo sistematicamente envolvidos em trabalho escravo contemporâneo, não demonstra lá muita energia para garantir o controle e a transparência de suas cadeias produtivas. Perguntadas, dão respostas padrão sobre responsabilidade social empresarial que, na verdade,são investimento social privado. Ou seja, apoiam projetos mil, mas evitar que sua atividade gere impactos negativos nem pensar.
Mas para que se preocupar? Na dúvida, a culpa é do coelho. Só dele.
Sobre o Autor
É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.