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Leonardo Sakamoto

Palestina, Timor Leste e a força de uma fotografia

Leonardo Sakamoto

10/01/2009 11h36

Timor Leste, um país no Sudeste Asiático, passou mais de duas décadas sob ocupação indonésia. Antes deles, eram os portugueses e, por séculos, liberdade era apenas uma bela idéia. A guerrilha timorense e a resistência de seu povo mantiveram-se heroicamente de pé e com o apoio da comunidade internacional em um momento de mudanças na geopolítica global e de crise econômica do ocupante, conquistou a liberdade.

Rodei a ilha quando ela ainda estava ocupada e a população sofrendo um dos maiores genocídios do século 20 (mais de 30% da população morreu assassinada ou por inanição). Compartilho neste post um momento-chave da história dessa luta para ressaltar qual a importância de imagens fortes divulgadas em um conflito armado. Antes de mais nada, preciso dizer que as histórias de Timor e das Palestina são diferentes – apesar de ambos os povos terem sofrido terríveis ocupações.

Vi muitas reclamações de leitores de jornais e sites devido a imagens fortes vindas de Gaza. Publicadas com cuidado que o tema merece, por mais que doam aos olhos e mexam com o estômago e atrapalhem o jantar ou o café da manhã, têm o poder de trazer a realidade para perto. É fácil ficar indiferente diante de números de violência, mas com rostos a situação muda de figura. Dizer que mataram mais de 800 pessoas em Gaza é uma coisa. Mas mostrar o assassinato de um rapaz moreno, de olhos bonitos, que era marceneiro, e sua noiva, professora, que gostava de cantar de manhã é outra.  Ou ainda oito crianças de uma mesma família, que sempre esperavam até a noite acordadas a chegada do pai que trazia comida para dentro de casa ou um motorista de uma ambulância, que tinha orgulho do seu trabalho. O outro deixa de ser estatística, e passa a ser um semelhante, pois é feito de carne e osso e não de números. Nesse momento, há uma aproximação, uma identificação, fundamental para empurrar os espectadores do conflito para ações, do protesto ao boicote. Seja em um massacre no Oriente Médio, em uma guerra entre grupos rivais na África ou um conflito armado em favelas das grandes cidades do país.

A grave situação de exclusão social em Timor Leste causada pela violência dos ocupantes, perpetuada pelo fracasso das políticas públicas pensadas para a ilha – dada a clara preferência aos indonésios, os altos índices de desemprego da população nativa e a falta de participação na administração – gerou uma falta de perspectiva e um ressentimento muito grande com o invasor pela população mais nova. Muitos desses jovens, educados na língua do dominador, estudaram em universidades da Indonésia. Acabaram entrando em contato com pessoas de outras províncias, insatisfeitos com o governo, e com o debate político. Ao mesmo tempo, difundiram a história recente de Timor. Essa nova geração de líderes trouxe fôlego à luta pela independência, organizando-se em grupos. De forma pacífica, realizavam protestos e tentavam pressionar Jacarta a adotar soluções ao conflito. Ao mesmo tempo, conscientizavam a população da situação e de formas de garantir o seu direito pela autodeterminação.

Devido às manifestações, muitos jovens foram presos ou passaram a ser perseguidos pelo exército. Em um dos casos, os estudantes estavam planejando um protesto para ocorrer durante  uma visita de uma delegação parlamentar portuguesa que checaria a situação de Timor. A visita acabou sendo cancelada por restrições colocadas por Jacarta com relação aos jornalistas que cobririam o evento, o que a missão internacional não aceitava. Com o cancelamento, a manifestação se transformou em uma procissão até o túmulo de um dos jovens mortos pelo exército, no Cemitério de Santa Cruz, na capital Dili, no dia 12 de novembro de 1991.

Quando a marcha chegou a Santa Cruz, o exército, que já havia prometido reprimir qualquer manifestação com "firmeza", abriu fogo contra os estudantes. Estimativas apontam para 271 mortos, 259 desaparecidos e 382 feridos. Uma estudante deu sorte e saiu ilesa, conforme o depoimento que me deu em Timor:

"Todos estavam correndo para dentro do cemitério. Jovens, velhos, mulheres e crianças gritavam. Fui até o muro, de dois metros de altura. Quis pular, mas não consegui alguém que me ajudasse. Amigos disseram para ficar. Fui à parte sul do cemitério e pulei o muro. Antes de pular o muro, vi um rapaz chorando a andar devagar, pois havia tomado um tiro nas costas. A camisa estava rasgada por causa do tiro. Deu uma impressão estranha, ele olhou para nós e depois continuou a andar. Havia pessoas na varanda de uma casa. Entramos correndo para dentro, todos chorando. Dentro em pouco trouxeram um amigo meu, que tomou um tiro nas pernas. Os tiros começaram por volta das oito ou nove da manhã. Refugiei-me na casa de uma amiga, tiramos o uniforme, fingimos ver TV para disfarçar. Depois quis voltar para casa, mas os soldados disseram "se fizer qualquer coisa, a gente atira". Meu pai tinha ido me procurar no cemitério e minha mãe no hospital. Vieram helicópteros.

Duas semanas depois, as aulas recomeçaram e começaram as histórias. Amigos que foram mortos, outros desapareceram, e muitos nunca mais reapareceram. Muitos apanharam tiros nas costas ou nas pernas. Alguns apanharam dois, três tiros de cada vez. Uma menina apanhou um tiro na orelha. Duas semanas depois tinham tirado os vestígios. Só na terra que ainda havia nódoas pretas de sangue, na terra do cemitério."

Os acontecimentos daquele 12 de novembro foram fundamentais para que a comunidade internacional ficasse sabendo da real situação em Timor, ao contrário das garantias indonésias de que o povo era a favor da integração e a região possuía apenas alguns distúrbios causados pela guerrilha radical.

Vídeos e fotografias produzidos por jornalistas que presenciaram os fatos rodaram o mundo. Inicialmente, o exército indonésio confirmou 19 mortos. O número cresceu para 50 após o trabalho de uma comissão de investigação montada pelo próprio governo e cujos resultados foram rejeitados pela resistência. O ditador indonésio Suharto precisava mostrar ao mundo que estavam sendo tomadas providências para punir os culpados desse "incidente isolado". Os militares envolvidos foram removidos de seus postos ou passaram por corte marcial, mas não recebendo penas superiores a 18 meses por "exceder-se" ou desobedecer ordens. Enquanto isso, 13 timorenses, a maioria estudantes, foram acusados de planejar o 12 de novembro, com penas atingindo a prisão perpétua. A partir desse ponto, houve um recrudescimento da repressão em toda a ilha, de forma a garantir que novas manifestações não acontecessem. Contudo, o estrago já havia sido feito e mundo não podia mais alegar cegueira.

Hoje, vivemos em um mundo cuja informação se espalha em tempo real. Mesmo com essa facilidade, muitos se furtam de ter acesso a ela. E em um mundo onde a comunicação é globalizada, cresce a força e a importância de ações globalizadas pela paz. Diante disso, a ignorância do que acontece à nossa volta deixa de ser uma benção e passa a se configurar delinqüência social.

Em tempo: a Al Jazeera, rede árabe que está cobrindo amplamente o massacre em Gaza, disponibilizou um álbum com imagens muito fortes do conflito, com seus mortos e prédios destruídos. Quem quiser ter acesso a elas, clique aqui.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.