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Leonardo Sakamoto

A internet e a farra dos comentários intolerantes 2

Leonardo Sakamoto

03/12/2010 15h41

"Como você tem estômago?" Tenho recebido por e-mail, com carinhosa frequência, essa pergunta enviada por leitores horrorizados com o nível dos comentários. Pacientemente, tento explicar que esses nem são os piores. Os que cometem crime de ódio, sugerem que determinada classe social deve ser banida e que propõem o extermínio de grupos já excluídos socialmente, por exemplo, são limados antes que causem danos, mas são mais feios de se ver.

Como já disse aqui antes, na primeira versão desta resenha comentada de comentários, a internet é apenas um espaço, ou seja, ela não é conservadora ou progressista em si. Já aqui, neste humilde cafofo, boa parte dos comentários são sim bastante reacionários. Parece que a temática dos "direitos humanos" funciona como uma espécie de imã, atraindo todo o tipo de lugares-comuns, ódios e demais faltas de entendimento.

Tenho uma política bastante liberal de comentários por aqui. Posso discordar veementemente do que diz o meu leitor, mas todos têm o direito à voz e a internet é um espaço para isso mesmo. Contanto que ele não incite a violência, ofenda outra pessoas, nem cometa crime de ódio, mantenho o comentário. Caso contrário, o dito vai pra glória. Aliás, estômago eu tenho, paciência também. E é isso que talvez deixe alguns comentaristas mais furiosos.

Para ler a primeira lista de comentários intolerantes, clique aqui.

Eis a lista atualizada com a ajuda dos leitores. Daqui a alguns anos, relações assim vão ser usadas por historiadores para entenderem que povo estranho era esse, tão amável, mas também tão intolerante e preconceituso para com o seu semelhante.

Comentário do leitor(a): "Bandido bom é bandido morto"
Minha observação: Para começo de conversa, diga-me com quem andas que te direi quem és. Afinal de contas, matar é a solução, porque pau que nasce torto não tem jeito, morre torto. E, na periferia, filho de peixe, peixinho é. Revidar é nosso direito, pois quem com ferro fere com ferro será ferido. Ou eles ou nós, pois o pior cego é aquele que não quer ver!

É tão fácil repetir idéias feitas, sem pensar, né?

Comentário do leitor(a): "Você pensa assim porque um destes pulhas malditos ainda não estupraram sua mãe. Seja mais corajoso, pára de ficar escrevendo só o politicamente correto"
Minha observação: Antes de mais nada, notem o detalhe do "ainda". Minha mãe agradece imensamente ao leitor o destino que ele, carinhosamente, preparou a ela. Fácil é escrever o que o senso comum deglute com facilidade e que está guardado em nossos instintos mais animais. Difícil é redigir algo com a certeza absoluta de que apenas uma minoria vai ler o texto até o final e, daí, refletir. Em um assunto polêmico, boa parte das pessoas passa o olho de forma transversal, capta algumas palavras como "direitos humanos"/ "traficantes"/ "Estado" ou "Palmeiras"/ "futebol" / "campeão" e sem nenhuma intenção de expor idéias ou debater, pinça um capítulo de sua CPA (Cartilha Pessoal de Abobrinhas) e posta como comentário. É a vitória da experiência individual sobre a necessidade coletiva, da emoção do momento sobre a racionalização necessária para que não nos devoremos a cada instante.

Comentário do leitor(a): "Por mim, aqueles 200 traficantes fugindo pelo morro deveriam ter sido todos metralhados em frentre às câmeras"…
Minha observação: …E depois, redimidos por todo o sangue na TV, eu e meus filhos sairíamos para comer uma bela macarronada ao sugo – pasta regada a um saboroso suco de uva. Suco, não que é coisa de pobre. De um bom vinho… Lembram daquela série de TV, Justiça Final, que contava a história do juiz Nicolas Marshall, que julgava e executava os bandidos no ato, sem tergiversar, nem fazer trolóló? Pois bem, ela fez muito mal a uma geração inteira. Tem gente com dificuldades cognitivas graves e que não consegue entender, nem a pau, que o Estado tem que fazer Justiça e não vingança. Ninguém está sugerindo que o Estado deve entregar o monopólio da violência, se tiver que matar, infelizmente, ele irá matar. Mas por necessidade, não por prazer; em combate, não de forma preventiva; seguindo a lei, e não por capricho personalista.

Comentário do leitor(a): "Por que o país não acaba com essa merda de direitos humanos?"
Minha observação: Fazem parte dos direitos humanos seu direito de ir à igreja e professar uma fé, de se organizar em um partido ou uma associação, de votar e ser votado, de não ser molestado por ter uma cor de pele ou orientação sexual diferentes, de poder ir livremente de casa para o trabalho sem o risco de ser abordado e preso sem justificativa, de ter igual direito, sendo homem ou mulher, de ter uma opinião diferente e não ser incomodado por isso (desde que essa opinião não machuque os demais), de ter um emprego decente, de não ser torturado gratuitamente, de ter acesso a um julgamento justo e não ser condenado sumariamente. Querem acabar mesmo com "essa merda de direitos humanos"? Tudo bem? Mas me avisem antes, porque não vou querer ser o último a apagar a luz.

Comentário do leitor(a): "Você fica criticando os casos em que os homens batem nas mulheres. Mas, pelas Leis de Deus, há direitos dentro da relação e ninguém pode se intrometer nisso. Você não sabe o que levou o homem a determinado ato, então não se intrometa."
Minha observação: Aleluia, irmão! Nem sei por onde começo… Bem, talvez pelo mais óbvio: se você não é casado, faça-nos um favor, não case. Melhor ainda, nem chegue perto de uma mulher – nem de sua mãe. Pelo menos, não antes de resolver alguma coisa que tem que ser resolvida aí dentro. Além disso, não há absolutamente nada que justifique violência física ou terror psicológico em uma relação. E, sim, é dever de qualquer pessoa em sã consciência se intrometer, como também tarefa do próprio Estado garantir a integridade da pessoa.

"Leis de Deus"? Há interpretações machistas dos textos das três grandes religiões monoteístas (cristianismo, islamismo, judaísmo) sistematicamente sendo usadas para escravizar as mulheres em suas relações. E uma luta grande das mulheres para dar uma outra visão – das Católicas pelo Direitos de Decidir a muçulmanas que relêem o Corão para mostrar que não são pessoas de segunda classe. Mas, como sabemos, essa ação tem sido facilitada pelo fato de as três grandes religiões terem sido recentemente assumidas por mulheres.

Comentário do leitor(a): "[Os rapazes agredidos na avenida Paulista] Deveriam ter apanhado mais."
Minha observação: Esse comentário aí em cima nem foi publicado. Denunciei o autor direto aos órgãos competentes. Posts sobre direitos dos homossexuais são os que mais dão dor de cabeça, pois tenho que ficar de olho aberto. O pessoal apela a um nível que vocês não têm idéia, utilizando mais palavrões do que palavras em uma única frase. Outra coisa fascinante: héteros não podem defender direitos de homossexuais. Na cabeça desse povo as coisas só fazem sentido se forem bem maniqueístas, bem preto no branco. Então, se você escreve criticando os jovens delinquentes que desferiram golpes de lâmpada fluorescente contra os rapazes na Paulista, você tem que ser gay. Daí vem uma segunda constatação: para as mesmas pessoas, "gay" é xingamento obsceno. Enfim, se esse pessoal lelé da cuca gastasse a mesma energia com a qual discute o direito de duas pessoas do mesmo sexo terem os mesmos direitos de duas pessoas de sexo distintos, já teríamos a cura do câncer.

O que mais me constrange nesse comentário é que não basta os jovens terem apanhado, o comentarista queria que eles apanhassem mais, sofressem mais, feito uma onda sádica de punição, como um açoite virtual. Uma vez que ele não pode chicotear esses malditos sodomitas em praça pública e, graças aos céus, a internet garante a covardia do anonimato, ele desfere um golpe digital, como se dissesse "foi pouco". Torcida por sangue, por morte? Talvez. Ouvi dia desses uma pessoa dizer que, se pudesse, espancaria os homossexuais. Por quê? Nojo. Poderíamos discutir aqui durante dias os motivos que levam alguém a um quadro de patologia social como essa (de querer o mal do seu semelhante mesmo sem o conhecer). Prefiro apenas acreditar que há cura para a homofobia. Tem que haver.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.