Após morte de jovem, MPT quer processar Vasco por trabalho infantil
O Vasco vai enfrentar o Fluminense, neste domingo, valendo o título de campeão do primeiro turno do Campeonato Carioca. Mas mesmo que o time de São Januário leve a Taça Guanabara para casa, os festejos não vão apagar uma história trágica envolvendo recentemente o clube – muito menos suas consequências.
A morte de Wendel Junior Venâncio da Silva, de 14 anos, durante teste de futebol no Vasco, no último dia 9, fez o Ministério Público do Trabalho desistir de negociar um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) e decidir processar o clube. A ação na Justiça terá como base irregularidades trabalhistas nas categorias de base, incluindo exploração de trabalho infantil, segundo informou a Daniel Santini, aqui da Repórter Brasil, a procuradora Danielle Cramer, do Ministério Público do Trabalho da 1ª Região (Rio de Janeiro).
Santini produziu uma bela reportagem em três partes. Primeiro, a ação que o Ministério Público do Trabalho quer mover contra o time carioca após a morte do rapaz e de mais de um ano de tentativas de negociação. Segundo, o conjunto de fiscalizações que está sendo preparado pelo Ministério do Trabalho e Emprego nos clubes de futebol após a morte de Wendel para combater o trabalho infantil. E, por fim, uma entrevista com o responsável no Brasil pelo programa de erradicação do trabalho infantil da Organização Internacional do Trabalho, apontando problemas graves nas categorias de base do futebol, o que inclui até violência sexual contra crianças, e cobra medidas urgentes do governo e dos clubes para resolver o problema.
O esporte deve ajudar no desenvolvimento de crianças e adolescentes e contribuir para que conquistem seus sonhos e não se tornar instrumento de degradação da sua qualidade de vida. Nem todos ficam milionários, muitos se perdem pelo caminho a um custo alto. É papel do Estado fiscalizar isso, mas também da sociedade. Quais torcedores gostariam que o sucesso do seu time fosse baseado na exploração infantil?
Abaixo, reproduzo os principais trechos da primeira reportagem de Daniel Santini:
Wendel faleceu de morte súbita enquanto participava de uma seleção para entrar nas categorias de base da equipe. A tragédia chamou atenção de autoridades para problemas nas categorias de base não só do Vasco, mas em todo o país. Com base no episódio, representantes da Organização Internacional do Trabalho (OIT), do Fórum Nacional pela Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil (FNPETI) e de Conselhos Estaduais de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente se mobilizam para intensificar a cobrança por mudanças. O grupo conta com o apoio do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), que teme que a exploração de adolescentes no futebol aumente com a realização da Copa do Mundo ao Brasil, e da Secretaria Nacional de Promoção dos Direitos da Criança e do Adolescente, do Governo Federal. A OIT defende a reformulação nas categorias de base de todos os clubes brasileiros.
"Estamos negociando [o TAC] há mais de um ano. O clube toda vez se compromete a assinar, mas não assina. Sempre propõe novas cláusulas. Cansamos de esperar boa vontade e vamos partir para a Justiça", argumenta a procuradora Danielle.
A diretoria do clube carioca ressalta que a morte de Wendel ocorreu em um teste e que, mesmo que as providências exigidas fossem tomadas, dificilmente a tragédia poderia ter sido evitada. "Ele estava participando de um teste leve, não de competição. Era um menino que desde os 9 anos jogava futebol de competição na cidade dele [São João Nepomuceno (MG)]. Tinha sido campeão em todos os anos e foi titular da seleção local. Ele estava aparentemente apto para a prática de esporte. Foi uma grande fatalidade. Se esse menino tivesse falecido em qualquer outro lugar, ninguém estaria falando nada", sustenta Aníbal Rouxinol, vice-presidente jurídico do clube.
Entre os problemas apontados pelo MPT está a ausência de registro dos adolescentes de 14 anos a 16 anos que compõem as equipes de base na categoria de aprendiz, o que, de acordo com as autoridades ouvidas pela reportagem, configura trabalho infantil.
Lei Pelé - O Vasco nega a exploração de adolescentes "Entendo e respeito [o posicionamento das autoridades], mas a Lei Pelé me impede de fazer qualquer registro de menor de 16 anos", coloca o representante jurídico do clube. O artigo 29 da Lei Pelé estabelece que "o atleta não profissional em formação, maior de 14 e menor de 20 anos de idade, poderá receber auxílio financeiro da entidade de prática desportiva formadora, sob a forma de bolsa de aprendizagem livremente pactuada mediante contrato formal, sem que seja gerado vínculo empregatício entre as partes". Apesar de a Lei Pelé não deixar clara a obrigatoriedade, o artigo 403 da Lei 10.097/2000 é direto quanto à necessidade de registro para adolescentes com mais de 14 anos exercendo atividades profissionais: "É proibido qualquer trabalho a menores de 16 anos de idade, salvo na condição de aprendiz, a partir dos 14 anos".
Rafael Dias Marques, da Coordenação Nacional de Combate à Exploração do Trabalho de Crianças e Adolescentes do MPT, diz que não há dúvidas quanto à necessidade de registro para atletas das categorias de base de equipes de futebol. Ao ser informado pela reportagem de que a interpretação de Luiz Henrique Ramos Lopes, da Divisão de Fiscalização do Trabalho Infantil do MTE, responsável por fiscalizar irregularidades, é a mesma que a do MPT, o representante do clube afirmou que tal decisão pode ser revista.
"Posso estar enganado. Nada é definitivo. A gente vai discutir esse ponto também, mas acho muito difícil fazermos registro de aprendiz para todos. O Vasco tem hoje inúmeros atletas, o governo federal deveria inclusive nos ajudar. Os clubes atravessam dificuldades no Brasil", diz Aníbal, ainda esperançoso de chegar a um acordo com as autoridades. "O Ministério Público [do Trabalho] quer fazer um grande evento porque o Vasco é o primeiro clube a assinar um TAC. O Vasco é sempre o primeiro em tudo. Nós vamos assinar. Ficamos de marcar uma data, houve uma série de complicações, a agenda do presidente [e ex-jogador Roberto Dinamite] é muito 'impressada' porque ele é também deputado estadual", completa
Direitos da criança e do adolescente - Além do MPT, o Ministério Público Estadual (MP/RJ) também cogita processar o clube por violações de direitos da criança e do adolescente. "Estamos estudando se entraremos com as medidas judiciais cabíveis. Acompanhamos a situação há bastante tempo e fomos surpreendidos pela morte deste menino que faleceu em local que não conhecíamos", relata a promotora Clisanger Ferreira Gonçalvez Luzes, que atua junto com a procuradora Danielle no caso. Em inspeções anteriores realizadas em São Januário, sede do Vasco, Clisanger diz ter encontrando jovens em condições inadequadas, em "dormitórios precários e banheiros em péssimos estados", e ressalta que, apesar da negociação de ajustes em curso, o clube nunca informou as autoridades sobre a existência de outro espaço para treinos e testes de garotos.
O Vasco alega que o centro de treinamento onde o adolescente faleceu em Itaguaí (RJ), a 69 km da capital fluminense, ainda não pertence ao clube, apesar de haver uma negociação em curso para sua aquisição. E nega que os atletas da categoria de base tenham sido instalados anteriormente em condições inadequadas. A morte ocorreu em meio a um dos testes realizados pela equipe para selecionar novos talentos. Cada processo de seleção é composto por três fases. O jovem havia sido aprovado pela primeira e acabou tendo um mal súbito após 12 minutos da segunda fase. Não havia médicos no local.
"Entre as adequações que vínhamos cobrando está a observação de direitos mínimos como assistência médica e alimentar durante o período de testes. Ainda que não exista uma relação de trabalho, esses garotos em período de testes tem que ter proteção. A adoção de medidas preventivas poderia evitar ocorrências como esta", complementa a procuradora Danielle. A diretoria do clube comunica que, após o episódio, todos os testes passaram a contar com médicos de plantão por determinação do presidente Roberto Dinamite.
Base legal - "Temos defendido a limitação do período de testes, que eles aconteçam durante um breve período no começo do ano para que os alunos não percam o período letivo na escola. Hoje, muitos tentam fazer testes em vários clubes e acabam perdendo o semestre", acrescenta a procuradora do trabalho. "Isso não é só no Vasco. Acontece no Brasil todo. É difícil colocar essa questão. Os clubes visam o alto rendimento e acabam esquecendo que tem ali um adolescente que, além de jogar futebol, tem outros direitos", completa. O MP/RJ também considera que o problema não se limita ao Vasco e pretende estender a fiscalização a outros clubes. "Os clubes exploram o sonho dos meninos de serem jogadores de futebol e se aproveitam da carência de recursos financeiros e econômicos das famílias. Muitos vêm de todo o Brasil para tentar a sorte nesses grandes clubes. Essa questão é bastante preocupante porque apenas uma parcela dos que tentam conseguem se tornar profissionais, que dirá atletas com fama e dinheiro. E muitos acabam sem educação, convivência familiar e comunitária", diz a promotora Clisanger.
Não é só no Rio de Janeiro que problemas têm sido constatados. Em Minas Gerais, clubes como o Atlético Mineiro e o Cruzeiro também foram pressionados recentemente a firmar acordos. No Paraná, também há discussões em curso nesse sentido. Em função da realização da Copa do Mundo no Brasil em 2014 e das Olimpíadas no Rio de Janeiro em 2016, as autoridades temem que o número de adolescentes explorados aumente no mesmo ritmo que o sonho de sucesso por meio do esporte. O MTE prepara uma série ações para tentar regularizar a questão. Hoje, no Brasil, nenhum clube tem cursos validados no sistema nacional de aprendizagem para fazer os registros considerados necessários pelas autoridades.
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