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Leonardo Sakamoto

Negar sopão é pouco. Temos que exilar os maltrapilhos de São Paulo

Leonardo Sakamoto

02/07/2012 12h11

Da proibição de distribuição do "sopão" à população em situação de rua ao apoio aos especuladores imobiliários que mantém prédios fechados enquanto pessoas dormem em barracos precários, temos gasto muito tempo e inventividade para criar formas de excluir do convívio da metrópole paulistana aqueles para os quais nunca abrimos as portas dos direitos sociais e econômicos.

Reuni parte desses métodos levados à cabo pela administração pública ou pela iniciativa privada há alguns anos. Por conta da eleições municipais, aproveita para atualizá-lo. Apesar de não estarem publicados, essas regras práticas e fazem vítimas diariamente – ainda mais em noites frias como essas pelas quais estamos passando. Registrá-las serve para lembrar o quanto somos ridículos e ajudar as futuras gerações, que vão nos julgar amanhã. Espero que não tenham dó ou piedade de nosso comportamento ridículo.

1) Áreas cobertas em viadutos, pontes, túneis ou quaisquer locais públicos que possam receber casas imaginárias de população em situação de rua devem ser preenchidas com concreto, evitando assim a criação de nichos ou casulos de maltrapilhos prontos para assaltar o cidadão de bem. A face superiora do bloco de concreto não deve ficar paralela à rua, mas com inclinação suficiente para que um corpo sem-teto nela estendido e prostrado de cansaço e sono role feito um pacote de carne velha até o chão.
1.1) Outra opção, caso seja impossível uma inclinação acentuada, é o uso de floreiras, cacos de vidro ou lanças de metal. É menos discreto, mas tem o mesmo resultado.

2) Prédios novos devem ser construídos sem marquises para impossibilitar o acúmulo de sem-teto ou de supostos marginais em noites chuvosas.
2.1) Caso seja impossível por determinações estéticas do arquiteto, a alternativa é murar o edifício ou cercá-lo de grades ou placas de acrílico. A colocação de seguranças armados é outra possibilidade, caso haja recursos para tanto.
2.2) Em caso de prédios mais antigos, uma saída encontrada por um edifício na região central de São Paulo e que pode ser tomada como modelo é a colocação de uma mangueira furada no texto, emulando a função de sprinklers. Acionada de tempos em tempos, expulsa desocupados e usuários de drogas. Além disso, como deixa o chão da calçada constatemente molhado, espanta também possíveis moradores de rua que queiram tirar uma soneca por lá.

3) Bancos de praça devem receber estruturas que os separem em três ou quatro assentos independentes. Apesar disso impossibilitar a vida de casais apaixonados ou de reencontros de amigos distantes, fará com que sem-teto não durmam nesses aparelhos públicos, atrapalhando a real função de um banco, que é enfeitar a praça.

4) Em regiões com alta incidência de seres indesejáveis, recomenda-se o avanço de grades e muros para além do limite registrado na prefeitura, diminuindo ao máximo o tamanho da calçada. Como é uma questão de segurança, o fiscal pode "se fazer entender" da importância de manter a estrutura como está.

5) Cloro deve ser lançado nos locais de permanência de sem-teto, principalmente nas noites frias, para garantir que eles não permaneçam no local. Caso não seja suficiente, talvez seja necessária a utilização de produtos químicos mais fortes vendidos em lojas do ramo, como vem fazendo algumas lojas no Centro da cidade. A sugestão é o uso de um aspersor conforme o item 2.2, mas instalado no chão.

Já que não se encontra solução para um problema, encobre-se. É mais fácil que implantar políticas eficazes – como uma reforma urbana que pegue as centenas de milhares de imóveis fechados para especulação (e que são grandes devedores de IPTU) e os destine a quem não tem nada. Ou repensar a política pública para usuários de drogas, hoje baseada em um tripé de punição, preconceito e exclusão e, portanto, ineficaz. Muitos vêem os dependentes químicos como lixo da sociedade e estorvo ao invés de entender que lá há um problema de saúde pública. As obras que estão revitalizando (sic) a região chamada de Cracolândia, apenas têm expulsado os moradores da região. Contanto que fiquem longe dos concertos da Sala São Paulo, do acervo do Museu da Língua Portuguesa e das exposições Estação Pinacoteca, uó-te-mo.

Melhor tirar da vista do que aceitar que o espaço público é (atenção! rufem os tambores, BG de suspense, foco no locutor)…  público!

A cidade não pertence aos que podem pagar por ela mas, sim, a todos. Mesmo que isso doa ao senso estético ou moral de alguém. Ou crie pânico para quem acha que isso é uma afronta à segurança pública e aos bons costumes.

Não buscamos a implementação de políticas públicas de inclusão. Ao invés disso, vamos afiando a nossa falta de bom senso. Enxotamos, negamos comida, matamos a pauladas (sem que ninguém nunca seja punido por isso), limpando a urbe para os já citados cidadãos de bem.

Neste momento, deve haver alguém, de frente para a tela de seu computador ou smartphone, entalado com aquela frase que, como já disse aqui, é o must do reacionarismo paulistano: "tá com dó, leva pra casa". Para estes, uma dica valiosa: cresçam.

PS: Querem apostar que tem gente que vai me xingar pela ironia do título sem ler o texto?

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.