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Leonardo Sakamoto

Quando a criança trabalha e a gente bate palmas

Leonardo Sakamoto

31/10/2012 16h55

Ao ver um tiquinho de gente esvaziando um forno em uma carvoaria, separando material reciclável em um lixão ou empurrando um carrinho em uma feira livre muitos ficam indignados. Mas quando a criança encontra-se em programas de auditório, telenovelas, espetáculos de dança, desfiles de moda ou propagandas quase todos nós achamos bonito. O fato é que, em ambas as situações, as crianças estão trabalhando. O debate sobre o trabalho infantil artístico ainda está em aberto, gerando controvérsias entre a defesa da proibição total e a necessidade de regulamentação para proteger crianças e adolescentes.

A reportagem é da jornalista Fernanda Sucupira, da Repórter Brasil.

O glamour artístico e a valorização social da fama muitas vezes impedem que sejam percebidos os prejuízos que tais atividades podem causar no desenvolvimento de crianças e adolescentes. E frequentemente resultam na condescendência das famílias, da sociedade e da justiça no Brasil. "Essas crianças passam o dia todo repetindo e esperando. Chegam a ficar de oito a dez horas para gravar uma propaganda de 15 segundos, repetindo muitas vezes cada tomada. Isso gera estresse, ansiedade e pressão sobre aquelas crianças que esquecem o texto ou cometem outros erros", afirma Sandra Regina Cavalcante, advogada e pesquisadora da Faculdade de Saúde Pública da USP, que estuda o tema desde 2007.

Em grande parte dos casos, o trabalho infantil artístico prejudica bastante o desenvolvimento escolar. Longas jornadas de trabalho, viagens constantes e a necessidade de memorizar muitos textos são alguns dos elementos que não permitem que haja tempo suficiente para estudar. Segundo Cavalcante, deslumbradas por ter estudantes famosos, muitas escolas são excessivamente compreensivas: fazem vista grossa para as faltas e deixam que se substituam as provas por trabalhos feitos em casa. Esse tratamento diferenciado, com uma série de privilégios, em alguns casos, pode levar inclusive a que sofram bullying de outros colegas.

Muitas dessas crianças levam uma vida agitada, com muito trabalho e tempo livre escasso, o que as afasta do convívio com familiares e amigos. "Elas ficam fatigadas, se acidentam, desenvolvem doenças relacionadas ao trabalho. Essa atividade pode acabar comprometendo o direito à saúde, à educação, ao lazer e ao esporte", afirma o procurador Rafael Dias Marques, da Coordenação Nacional de Combate à Exploração do Trabalho de Crianças e Adolescentes do Ministério Público do Trabalho (MPT).

Não são raras também as situações de constrangimento, humilhação e rebaixamento da autoestima da criança. Num episódio ocorrido em maio deste ano, por exemplo, no Programa Silvio Santos, a pequena Maísa, de apenas 10 anos, humilhada pelo apresentador saiu chorando do palco, bateu a cabeça em uma câmera e foi chamada de "medrosa" pelo público. A mãe, no entanto, a empurrou de volta, para que cumprisse seu contrato. "Isso é uma forma de violência. Uma ocorrência dessas não pode ser tolerada pela justiça", afirma Isa Maria de Oliveira, secretária-executiva do Fórum Nacional para a Prevenção e Eliminação do Trabalho Infantil (FNPeti). Hoje, Maísa é uma das estrelas mirins da regravação da novela Carrossel.

As crianças também participam de gravações com elencos adultos, em cenas que não são apropriadas para elas, que incluem situações de agressividade e violência. A convivência com o processo dramático, isto é, a vivência das crianças de suas personagens pode levar a sérios danos para o desenvolvimento, já que muitas vezes elas ainda não diferenciam o que é fantasia do que é realidade.

Proibição X regulamentação – Dentro do próprio FNPeti – que reúne representantes do governo federal, de outras instâncias do poder público, dos trabalhadores, dos empregadores, de entidades da sociedade civil e de organizações internacionais – existe um debate em aberto sobre o trabalho infantil artístico.

De um lado, estão aqueles que defendem a total proibição de todas as formas de trabalho infantil, apoiando-se na Constituição Brasileira, que define que é proibido qualquer trabalho a menores de 16 anos, salvo na condição de aprendiz, a partir de 14 anos, e qualquer tipo de trabalho noturno, perigoso ou insalubre a menores de 18 anos. De outro, quem defende a regulamentação desse tipo de trabalho, por considerar que a Convenção 138 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), ratificada pelo Brasil em 2001, admite o trabalho artístico como uma das exceções.

No entanto, de acordo com Renato Mendes, coordenador do Programa Internacional para a Eliminação do Trabalho Infantil no Brasil da OIT, para que essa exceção fosse válida, no momento de ratificar a convenção, o país teria que determinar explicitamente seus casos excepcionais, o que não ocorreu em relação à atividade artística. Ele também ressalta que o que estaria permitido seria a participação em apresentações artísticas, o que é diferente de trabalho infantil artístico.

Mendes considera que mais importante que a questão legal é o aspecto ético que fundamenta a convenção: a ampliação progressiva da proteção de crianças e adolescentes. "Está se pensando no elemento comercial ou na criança? A participação da criança é essencial para o desenvolvimento dela?", questiona o representante da OIT.

Autorizações judiciais – Entre aqueles que entendem que a atividade deve ser regulamentada, porém, muitos defendem a ideia de excepcionalidade das autorizações judiciais. Isso quer dizer que deve haver uma análise caso a caso antes de elas serem concedidas, averiguando-se as condições de trabalho, para serem pensadas as medidas de proteção que devem ser tomadas.

"O juiz deve avaliar se é imprescindível a participação de uma criança ou de um adolescente para a execução de determinada obra artística, e se ela vai possibilitar o desenvolvimento do talento artístico. Há muito pouca norma sobre o assunto, o que dá margem a autorizações judiciais simplistas, sem parâmetros de proteção, que levam à violação de direitos", explica Marques.

O MPT desenvolveu uma lista de nove parâmetros de proteção para essas permissões excepcionais, entre eles a exigência de um laudo psicológico; uma jornada compatível com o horário escolar; matrícula, frequência e bom aproveitamento escolar; assistência médica, odontológica e psicológica; e o depósito de um percentual da remuneração da criança em uma poupança para que possa retirar quando completar 18 anos.

No entanto, a maior parte das autorizações judiciais no Brasil atualmente é absolutamente vaga. "O que predomina não é uma excepcionalidade, já que crianças e adolescentes saem de uma telenovela e vão para outra e há crianças trabalhando em programas de auditório ano após ano. Há um equívoco inaceitável de quem dá as autorizações e não leva em consideração os prejuízos e comprometimentos dessa atividade para a criança", critica a secretária executiva do FNPeti.

Publicidade – Há um consenso entre aqueles que atuam no enfrentamento ao trabalho infantil de que deve ser proibida qualquer participação de crianças e adolescentes em peças publicitárias, por se considerar inaceitável que pessoas nessa faixa etária sejam utilizadas para vender produtos, em uma situação totalmente voltada aos interesses do mercado, sem caráter artístico. Avalia-se também que em nenhum caso é imprescindível a participação infantil na publicidade, já que essas mensagens podem ser transmitidas de outras formas. "Por que para vender produtos telefônicos, bancários, precisa colocar uma criança? Qual é a justificativa ética, de direitos humanos para isso?", questiona o representante da OIT.

O FNPeti defende que deve ser assegurado a crianças e adolescentes o direito de desenvolverem seus talentos artísticos, mas em um ambiente educacional, como parte do processo educativo. "Deve-se desenvolver o talento aprendendo, para depois entrar no mercado de trabalho na idade certa. A participação artística deve ter caráter lúdico, de formação", afirma a secretária executiva

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.