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Leonardo Sakamoto

Xingamento em debate: como ir para o inferno se ele não existe?

Leonardo Sakamoto

28/11/2012 13h55

"Abortista! Vai defender viado no inferno."

Vez ou outra sou abordado por pessoas que gostam ou desgostam do que escrevo aqui. A bem da verdade, fico mais à vontade com quem reclama porque não sei lidar muito bem com elogios de desconhecidos – coisa para o analista ajudar a resolver a um custo alto e um prazo longo… Analisando as críticas, percebo que muitas delas são interessantes, até porque funcionam como um bom termômetro para corrigir o rumo ou cutucar ainda mais a ferida, dependendo do assunto em questão.

A frase do alto veio de uma abordagem pouco convencional. Jovens, brancos, saudáveis, com dentes fortes e cabelos penteados, provavelmente estudantes universitários da classe média alta paulistana, quando passavam por mim de um carro com jeito de ter sido emprestado do pai, reduziram a marcha e gritaram a frase acima, entre outros impropérios. Bem, o que podia fazer? Abri um sorriso e mandei um beijinho.

Triste. Pois não gostaram do beijinho. Prova de que ainda falta amor em São Paulo.

Vou excluir a questão do "abortista". Até porque, no que pese defender o direito de toda mulher a ter autonomia sobre seu próprio corpo, não estou autorizado pelo Conselho Regional de Medicina a fazer procedimentos cirúrgicos. Por favor, por favor, não insistam. Também não distribuo remédios ou outros objetos utilizados por mulheres de baixa renda no sentido de interromperem uma gravidez indesejada – lembrando que o aborto já é "legalizado" no Brasil a quem tem R$ 5 mil para pagar uma clínica particular. O que faço é discutir o assunto abertamente e apoiar amigas que já passaram por essa situação, algumas delas temendo a reação violenta da família ou enfrentando o abandono do companheiro. Portanto, a alcunha de "abortista", no que pese a pretensa pejoratividade presente na provocação pueril, não é aplicável. Seria o mesmo que me chamar de "padeiro", "profeta" ou "palmeirense".

Vamos nos entreter um pouco com a segunda parte da oração: "Vai defender viado no inferno". Que está conectada com a primeira parte através do nosso machismo do dia a dia.

Minha mente doentia que opera em forma de desenho animado imaginou o resgate de um cervo entre as labaredas de uma área afetada pelas chamas cuspidas por um vulcão ou algo do gênero.

Singela contribuição enviada pelo leitor Henrique Oliveira.

Mas, decerto, os meninos de sorriso bonito não queriam dizer isso.

Como cantaram os pneus e se foram, não deu tempo de informá-los que – infelizmente – não acredito na existência do Mar de Enxofre, o que impossibilitaria que o xingamento em questão gerasse algum incômodo real. Também acredito que o Capeta, bem como todo o conjunto do sobrenatural, seja uma criação nossa. E como o Demo, o Tinhoso, o Tranca-Rua, o Coisa Ruim, Aquele-que-não-se-diz-o-nome, o Matreiro, o Sujeito, não existe, somos nós os responsáveis pelas nossas ações que provocam dor em outras pessoas. Duro isso, né?

Além do mais, gays, lésbicas, transexuais, enfim, não precisam de ninguém que os defenda. Os "cidadãos de bem" que vomitam seu asqueroso preconceito sobre aqueles e aquelas que não conseguem entender é que precisam ser defendidos. Defendidos de si mesmos, porque causam um mal sem tamanho à sociedade, propagandeando de pai para filho as mesmas ideias absurdas e pré-concebidas sobre quem tem direito a ter direito. Precisamos defender os homofóbicos e demais intolerantes deles próprios antes que seja tarde demais e consigam fazer da vida deles um inferno real.

Em muitas dessas famílias, pais aliviados ficam agradecidos sempre que um instituto de pesquisa obscuro ou uma "especialista" em sexualidade descobre que seu filho ou filha apenas "padece de uma terrível doença" e seu comportamento "não foi um erro de criação".

Discursos como esse ajudam a reforçar como um desvio o fato de alguém ser atraído por uma pessoa do mesmo sexo. E se é um desvio, pode ser corrigido. Arrumado. Consertado. Curado. E posto na prateleiro ao lado das marcas conhecidas de cereais e de picles. Imagine só: você não curte de verdade aquela pessoa, está apenas dodói.

Não raro, essas pesquisas são financiadas com recursos de organizações religiosas. Ou seja, o resultado deve ser levado tão a sério quanto um fictício estudo sobre os benefícios do tabaco bancado pela Phillip Morris ou sobre a importância da produção do aço para a preservação do meio ambiente patrocinado pela Gerdau.

Como já escrevi aqui, a Câmara dos Deputados está debatendo a resolução do Conselho Federal de Psicologia que, desde 1999, proíbe profissionais de oferecerem tratamentos para "curar" homossexuais. Tramita projeto do deputado federal João Campos (PSDB-GO) que susta a vigência dessa resolução.

Todos têm direito a expressar sua fé, como todos deveriam ter direito a ter sua orientação sexual respeitada. Mas se tratamentos como esses passarem a ser oferecidos legalmente, sugiro também reciprocidade com a religião. Vamos curar cristãos, muçulmanos, judeus e todos aqueles que, dentro das religiões adotam comportamentos fundamentalistas, acreditando que amor é desvio.

Ainda mais porque escolhemos a fé. Não a orientação sexual. E lutar pelos direitos LGBTT nunca matou ninguém. O mesmo não posso dizer do já citado fundamentalismo religioso…

Ao final, vendo aquele carro importado indo embora com os rapazes, suspirei fundo. Não por mim, mas por eles. É um absurdo que a essa altura da história nossa sociedade ainda tenha situações como essa. Não de ofensa a blogueiros, pois o mico pago por eles foi a parte divertida, mas de demonstração pública de intolerância.

Uma sociedade que não tem vergonha de fazer isso é aquela que, de tempos em tempos, espanca e assassina gays e lésbicas. Que abriga seguidores de uma pretensa verdade divina que taxam o comportamento alheio de pecado e condenam os que julgam diferentes a uma vida de terrível aqui na Terra, tornando real – enfim – o que suas escrituras sagradas chamaram de inferno. Por que a culpa é da sociedade? Porque, de acordo com Constituição, a dignidade é um bem que deve ser garantido pela coletividade e tutelado pelo Estado.

E, se não bastasse isso, representantes políticos (que deveriam garantir que direitos fossem válidos a todos os cidadãos) agem não para fazer valer o Estado de Direito, mas sim incentivar a intolerância, empurrando a sociedade para o precipício.

O homem é programado, desde pequeno, para que seja agressivo. Raramente a ele é dado o direito que considere normal oferecer carinho e afeto para outro amigo em público. Manifestar seus sentimentos é coisa de mina. Ou, pior, é coisa de viado. De quem está fora do seu papel.

Gostaria que nos déssemos conta que já passou o momento de sairmos de nossa zona de conforto e começarmos a educar nossos filhos para viverem sem medo. E não para serem inimigos de quem não usa o pênis para dominar o mundo.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.