Um braço arrancado é mais do que apenas um braço arrancado
São Paulo é uma não-cidade.
Não pelo atropelamento na avenida Paulista de um jovem, morador do Jardim Pantanal, bairro pobre do extremo Leste da capital, que costumava ir para o trabalho de bicicleta.
Não por outro jovem que saiu de uma balada no Itaim Bibi, bairro rico da cidade, dirigindo seu carro bonito, após ter ingerido álcool, na madrugada.
Não por uma alegação de que houve fuga sem que fosse prestado socorro por medo de linchamento.
Não pelo motorista ter arrancado o braço do ciclista na batida e, ao descobrir o membro em seu automóvel quilômetros depois, tê-lo arremessado em um córrego fétido ao invés de devolver para um reimplante.
Não, por nada disso.
Pois li e reli todas as notícias produzidas sobre o caso e percebi, de forma melancólica, que essa sequência de fatos bizarros, sem razão nenhuma de ser, fazem muito sentido para mim, que sou morador da maior cidade do país. De uma forma ou de outra, já ouvi essa história antes, com pequenas variações e tenho certeza que meus colegas a relataram outras tantas, com outros nomes. Às vezes é um braço que se vai preso a um carro, às vezes é uma vida inteira lançada ao esgoto.
Mas isso não deve fazer sentido para milhões de outras pessoas, moradoras de milhares de outras cidades no país. Não, não estou dizendo que São Paulo é mais violenta. Mas em São Paulo, apesar da indignação, o surreal e o insano fazem todo o sentido. Nós os banalizamos.
E ajudamos a construir uma cidade, que não faz sentido, por nossa ação ou omissão.
Podemos tentar fazer diferente?
Num passe de mágica, o braço emergiu do córrego e voou para as mãos de Alex, que entrou em seu carro e, rapidamente, chegou à avenida Paulista onde David o esperava deitado no chão. Ao chegar, o braço retornou de pronto ao seu lugar e a bicicleta prateada se desamassou. Alex voltou para o carro a tempo de chegar antes do fim da balada. Passou uma noite alegre, bebendo com os amigos. Quando o barman deixou cair o copo no chão, fazendo com que o tempo voltasse a correr para frente, chegou para um camarada e pediu para colocá-lo num táxi. Em casa, caiu em sono profundo, como há muito tempo não fazia, e sonhou com o futuro.
Queria que as coisas fossem tão fáceis quanto uma inversão de texto.
E que a responsabilidade pelo acontecido, no fundo, fosse só dele.
"Meu filho disse que, mesmo sem o braço, tem a impressão de que ainda pode mexê-lo."
E que essa história saísse da minha cabeça e me deixasse dormir.
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