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Leonardo Sakamoto

Protestos: a sanha punitiva do "Estado-locomotiva" da nação é rude

Leonardo Sakamoto

16/06/2013 20h01

Foi necessário o Supremo Tribunal Federal intervir para garantir a liberdade de expressão por aqui, uma vez que a conservadora Justiça paulista (desculpe pela redundância) decidiu que era proibido reivindicar mudanças legislativas. Na prática, era isso o que pedia a Marcha da Maconha que, até 2011, era proibida: discussão, conversa, diálogo. O governo paulista cumpriu, à risca, a decisão, descendo porrada nos manifestantes.

A esperança de São Paulo é que uma nova geração, liberal em costumes, progressista politicamente, consciente com relação ao meio ambiente e aos direitos sociais e civis, menos arrogante e com uma atuação realmente federalista, consiga emergir com força em meio à decadência quatrocentona, travestida de pseudomodernidade ao longo do século 20, que ainda grassa por aqui.

Essa geração está indo às ruas para protestar pelo direito de ir e vir (tolhido com o aumento das passagens de ônibus) e de protestar. E mesmo respirando gás lacrimogênio, levando balas de borracha e tomando cacetada da Polícia Militar, volta e volta, em número cada vez maior, como gremlins banhados em água (adoro gremlins, são muito fofos). Ao contrário da minha geração, a dos "Caras-Pintadas", eles não contam com a simpatia da maioria da imprensa, muitos menos com a de autoridades públicas – o que nos facilitava a vida. Portanto, é irônico como muitos erroneamente chamam esse pessoal que está indo às ruas de "massa de manobra" e não faz a devida autocrítica com relação ao que foi 1992. Por mais que seja legítima a defenestração de um pillantra, não transformamos a realidade social do país com a sua saída. Alguns que pediram seu impeachment até se aliaram a ele anos depois, vejam só.

E falando em cacetadas, a sanha punitiva do "Estado-locomotiva" da nação é grosseira, é rude, tendo – na maioria das vezes – como alvo o povaréu que ousa ir contra alguma coisa estabelecida pelo status quo. Quem não lembra da praça de guerra criads pela PM, no dia 21 de maio de 2011, durante a repressão a uma das marchas, na avenida Paulista e redondezas? Agora, imagine se ela tivesse acontecido na Estrada do Campo Limpo ou na M'Boi Mirim? Ia ser bomba jogada por helicóptero, igual ao que pessoal fazia nas greves dos cortadores de cana da região de Guariba, interior de São Paulo, há uns 30 anos.

Se arma de choque elétrico, gás de pimenta, cacetete e balas de borracha são não-letais, então gostaria que os responsáveis pela segurança pública do Estado as testassem em si próprios, mostrando à população os resultados, antes de utilizá-las como instrumento de contenção de manifestações. Pelo amor das divindades da mitologia cristã! Estão querendo enganar a quem com esse discurso de que elas são para proteger a vida do cidadão? Dentre todos os danos ao patrimônio público, nenhum, absolutamente nenhum, é equivalente ao olho de uma pessoa – como o do fotógrafo atingido pela polícia e que pode perder a visão. Pelo menos não em uma sociedade que coloca em primeiro lugar a vida e, depois, os bens públicos e privados.

E por falar em olho, lembrei de histórias que mostram o quão paradigmática essa situação é. Maria Aparecida foi mandada para a cadeia por ter furtado um xampu e um condicionador. Perdeu um olho enquanto estava presa. Sueli também foi condenada pelo roubo de dois pacotes de bolacha e um queijo minas. São dois, mas poderia ter dado muitos outros exemplos que ocorreram em São Paulo, Estado que julga com celeridade casos de reintegração de posse contra sem-terra e sem-teto e que reprime violentamente manifestações populares, mas é moroso e pouco severo nos casos de desapropriação de terras griladas que deveriam retornar ao poder público. Implacável com pequenos, preguiçosos com os grandes.

O legal é que, de vez em quando, os pequenos se tornam grandes. Enquanto você lê esse texto, os pequenos já devem ser mais de 200 mil, considerados os confirmados para a manifestação de segunda (17) – a quinta contra o aumento das passagens do transporte público em São Paulo. É claro que confirmar na web é uma coisa, ir é outra. Mas se uma parcela desses já estiverem presentes, o cardume de sardinhas vai encher o saco da moreia.

Peço a todos os que gostam desta cidade e deste Estado que não desanimem. Está em curso uma lenta, mas inexorável, mudança feita por aqueles que querem ter o direito de serem livres para se locomover em sua própria terra. Mas também para se expressar, viver e amar, tendo a garantia de sua dignidade respeitada.

O poder concedido a representantes, tanto em partidos, como em sindicados, associações, entre outros espaços, vai diminuir e a atuação direta das pessoas com os desígnios da sua vida vai aumentar. Quando escrevi isso, disseram que estava sendo otimista demais. Talvez – e eu não estou acostumado em ser otimista, considerando que a história provou que a realidade se aconchega no seio do pessimismo. Mas vendo as pessoas na rua contra a vontade do Estado…

Bem, os problemas não vão se resolver todos aqui e agora. Mas as pessoas, agora, se lembram do que uma multidão é capaz de fazer.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.