Roupas da Le Lis Blanc são fabricadas com escravidão
Fiscalização resgata 28 pessoas, incluindo uma adolescente de 16 anos. Costureiros vítimas de tráfico de pessoas viviam e trabalhavam em condições degradantes e cumpriam jornadas exaustivas, características de trabalho análogo ao de escravo. Daniel Santini, da Repórter Brasil, acompanhou a operação de fiscalização:
A parede é de tijolos aparentes, com reboco improvisado e tábuas tapando as janelas. O piso é de cimento, coberto de retalhos, linhas e sujeira. Há fios de eletricidade puxados de maneira improvisada por todos os lados, alguns perigosamente próximos de pilhas de tecido, e, em um canto da improvisada oficina de costura, uma caixa d´água. Para ficarem mais próximos das máquinas, os lustres pendem do teto amarrados por cordões em que é possível ler "Le Lis Blanc", nome de uma das grifes mais caras do país. Espalhadas nas mesas estão etiquetas da marca, peças finalizadas e guias com orientações sobre tamanho e corte. Em cômodos próximos, ficam os trabalhadores bolivianos, vivendo em beliches em quartos apertados, alguns com divisórias improvisadas, recebendo por produção e cumprindo jornadas exaustivas.
A descrição é de uma das três oficinas em que costureiros que produziam peças da marca Le Lis Blanc foram resgatados durante fiscalização realizada em junho, acompanhada pela Repórter Brasil, em São Paulo. Com algumas variações, o cenário de degradação humana foi o mesmo encontrado em outras duas unidades de produção de peças da marca. Todas as três oficinas com problemas eram "quarteirizadas". Duas empresas intermediárias encomendavam as peças e as repassavam para a grife de luxo. Mesmo assim, de acordo com o auditor fiscal Luís Alexandre Faria, que participou da ação, não há dúvidas sobre a culpa da Restoque S.A, empresa dona da marca Le Lis Blanc, em relação às condições em que os trabalhadores foram resgatados. Ele ressalta que não só foi caracterizada terceirização da atividade fim, o que por si só já configuraria a responsabilidade do grupo, como também nesse caso ficou evidente a ligação direta da empresa com a organização da linha de produção.
Segundo ele, toda cadeia produtiva estava baseada em encomendas da Le Lis Blanc. Ele estima que 90% das encomendas das intermediárias eram da grife e que 100% da produção das oficinas era de peças da marca. Quando a fiscalização foi feita, as oficinas estavam paradas, devido a um cancelamento repentino de encomendas. "Isso só agravou a situação, pois tirou a única possibilidade de subsistência dos trabalhadores que costuravam para a empresa", explica o auditor. "O principal problema que encontramos foi o fato de trabalhadores morarem e viverem no mesmo local", completa. Ao todo, 28 pessoas foram libertadas, incluindo uma adolescente de 16 anos. Também foi caracterizado tráfico de pessoas para fins de exploração de trabalho em condição análoga à de escravo, conforme previsto no Protocolo Adicional à Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional Relativo à Prevenção, Repressão e Punição do Tráfico de Pessoas, e na Instrução Normativa n. 91 da Secretaria de Inspeção do Trabalho do Ministério do Trabalho e Emprego.
Além de submetidos a condições degradantes e jornada exaustiva, muitos dos resgatados estavam presos a dívidas, o que também configura escravidão contemporânea. Todos resgatados são bolivianos.
A ação foi coordenada pelo auditor fiscal Renato Bignami, e, além de Luís Alexandre Faria, contou também com a participação de Letícia Emanuelle Bill, os três vinculados à Superintendência Regional do Trabalho e Emprego de São Paulo (SRTE/SP). Também participaram Christiane Vieira Nogueira e Tiago Muniz Cavalcanti, procuradores do Ministério Público do Trabalho; Jairo Diniz Dantas, auditor da Receita Federal; Fabiana Galera Severo, da Defensoria Pública da União; Adriana Aparecida Mazagão, do Núcleo de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas da Secretaria da Justiça e da Defesa da Cidadania do governo de São Paulo; e os policiais Eduardo Xavier dos Santos, Gilberto Paula de Moura e Samuel de Freitas, da 1ª. Delegacia de Polícia de Proteção à Pessoa da Polícia Civil de São Paulo. O trabalho foi acompanhado pela juíza Patrícia Terezinha de Toledo, da Vara Itinerante de Combate ao Trabalho Escravo.
Segundo a SRTE/SP, a diretoria da Le Lis Blanc assumiu a responsabilidade pelo caso, fazendo o registro e regularizando o pagamento de encargos de todos os trabalhadores, incluindo direitos retroativos referentes ao período em que ficou comprovado que os costureiros trabalharam para o grupo. As indenizações pagas diretamente aos resgatados chegaram a cerca de R$ 600 mil, ainda segundo as autoridades.
Procurada, a empresa, por meio de sua assessoria de imprensa, afirmou o seguinte: "Recebemos em 22 de julho de 2013 autuação do Ministério do Trabalho e Emprego envolvendo empresas que não conhecemos e com as quais não temos relacionamento. Tal autuação envolve valores estimados entre R$ 50 mil e R$ 150 mil. Cumprimos integralmente a legislação trabalhista nas relações com nossos colaboradores e tomamos os mesmos cuidados com nossos fornecedores. Analisaremos as bases de tais autuações e apresentaremos defesa oportunamente".
Contrastes – Os costureiros ganhavam por produção e cumpriam jornadas de pelo menos dez horas diárias. Os entrevistados afirmaram trabalhar das 7h ou 8h às 17h, 18h ou 19h de segunda-feira à sexta-feira, e das 7h ao meio-dia de sábado. Alguns dizem ter cumprido regularmente jornadas de até 12 horas e trabalhado sem descanso semanal, preocupados em juntar dinheiro ou em conseguir pagar dívidas contraídas com os empregadores. Segundo os depoimentos, em média o valor pago por peça variava de R$ 2,50 a R$ 7.
Nos shoppings, as roupas com a marca Le Lis Blanc são vendidas por mais valores que chegam a 150 vezes mais. Conforme informações disponíveis no site da empresa, uma calça da grife pode chegar a custar R$ 1.999,50, uma saia R$ 1.350,00, um vestido R$ 999,50, blusas e camisas R$ 599,50, e uma regata R$ 359,50. Em casos excepcionais, para peças delicadas e de difícil corte, costureiros experientes afirmam ganhar até R$ 30. A peça mais cara no catálogo virtual da grife é a jaqueta Aspen, vendida por R$ 2.290,00.
"É um absurdo essa diferença entre o que a gente ganha e o preço que eles cobram pela peça, a gente sabe, mas a gente não pode fazer nada. Se eu costurar a mesma peça e tirar a etiqueta, ninguém paga esse valor", afirma um dos costureiros resgatados. "Para o dono de uma fábrica, é fácil falar: 'essa peça é fácil de costurar'. Mas não é um trabalho qualquer. Eu tenho orgulho do que eu faço, cada pessoa nasce com um talento e deveria ser valorizada por isso".
No caso da Le Lis Blanc, o contraste entre as condições em que as peças são produzidas e os locais em que elas são vendidas também chama atenção. Em shoppings, as lojas da grife são luxuosas, com vendedoras produzidas conduzindo clientes entre tapetes delicados, poltronas e ricos objetos de decoração. Todas as unidades da rede têm o mesmo perfume e é possível comprar a essência. Um potinho de 100 ml custa R$ 79,50.
É o mesmo valor que alguns dos costureiros resgatados afirmaram receber para fazer costurar cerca de 11 peças da grife.
Bo.Bô – A equipe de fiscalização também encontrou peças da BourgeisBohême, a Bo.Bô, nas linhas de produção em que aconteceram os flagrantes. Além das duas marcas já citadas, a Restoque também é proprietária das grifes John John, Noir e Rosa Chá, sobre as quais a fiscalização não encontrou indícios de irregularidades.
Segundo Luís Alexandre Faria, a empresa mantinha controle sobre a produção, desenvolvendo os modelos, determinando cortes e custos, e organizando as coleção sazonais (primavera/verão – outono/inverno). No caso das peças da Bo.Bô, as especificações técnicas eram detalhadas e a própria Restoque fornecia os tecidos para a confecção das peças. De acordo com os registros encontrados em uma das oficinas, os costureiros recebiam R$ 5 por calça modelo Taylor, vendida em promoção no site da Bo.Bô por R$ 319,20. Na loja, há peças como o vestido Favorite, comercializado por R$ 3.368,00.
Além de multa pelas infrações trabalhistas, a empresa também pode responder a ações judiciais e ter seu registro cassado. O Ministério Público do Trabalho (MPT), que participou da fiscalização, negocia um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) com a diretoria para que a empresa se comprometa a tomar ações preventivas de modo a evitar que o problema se repita. "Esperamos que eles reconheçam o erro e se responsabilizem futuramente em relação a toda cadeia produtiva, que fiscalizem as confecções e oficinas para proibir essas condições e, quando encontrarem qualquer irregularidade, suspendam imediatamente as encomendas", explica o procurador Tiago Cavalcanti. O MPT também negocia indenização por danos morais.
Se não houver acordo, a procuradoria entrará com uma ação civil pública para garantir a tomada de providências. O Ministério Público Federal, que recebeu uma cópia do relatório de fiscalização, pode mover uma ação criminal. Submeter pessoas à escravidão é crime previsto no Artigo 149 do Código Penal brasileiro. Em qualquer processo, civil ou criminal, se a empresa vier a ser condenada em segunda instância pode ter o registro no Imposto de Circulação de Bens de Mercadoria e Serviço (ICMS) cassado junto à Secretaria Estadual da Fazenda de São Paulo, com base na lei sancionada pelo governador Geraldo Alckmin (PSDB) em maio. A empresa condenada fica impedida de continuar a exercer o mesmo ramo de atividade econômica por um período de dez anos em São Paulo.
Post alterado às 17h do dia 29 de julho para a inclusão de informações sobre a Bo.Bô.
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