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Leonardo Sakamoto

Está difícil andar de carro em São Paulo? Vá de ônibus!

Leonardo Sakamoto

26/08/2013 13h51

Como não acredito em inferno, não faz diferença mesmo. Mas certamente deve haver algum mar de enxofre e fogo preparado para quem, como eu, abriu um sorriso quando ouviu no rádio, nesta manhã, um motorista reclamando que a vida dele havia se tornado um inferno com a implementação de faixas exclusivas para ônibus. Na sua opinião, a cidade estava pior por conta disso.

Ao mesmo tempo, os ônibus fluíam com velocidade acima do normal para o horário, transportando quem não tem um possante e, portanto, não pode ir para o trabalho ou a escola cantando Michel Teló, sob o clima agradável do ar condicionado e tuitando – enquanto dirige – que São Paulo não vai para frente por falta de cidadania.

O ideal seria melhorar o transporte coletivo para, daí então, sacrificar o individual? Sim claro. Mas também seria ideal que Gargamel parasse de perseguir os Smurfs, não é mesmo? Os recursos públicos são escassos e, por isso, faz-se necessário apontar prioridades ao invés de fantasiar uma situação que nunca vai acontecer. É escolher um dos dois.

Sob qualquer ótica que não seja a do puro egoísmo, o transporte coletivo deveria ter prioridade em uma metrópole como a capital paulista. Por isso, tenho uma preguiça-monstro quando ouço alguém reclamar que a implantação de faixas exclusivas está tornando a vida dele ou dela um inferno. Ou quando esse mesmo alguém diz que aumentar o congestionamento dos automóveis para diminuir o dos ônibus tolhe o direito de ir e vir de quem tem carro.

E afirma, de forma bem canalha, que ele é uma minoria e uma democracia verdadeira respeita os direitos das minorias. Como se não fosse a minoria numérica a que ele pertence quem exerce, na prática, o direito à mobilidade por aqui desde sempre. E como se o respeito a esse conceito deturpado de "dignidade" da minoria motorizada não mantivesse a maioria pedestre muito distante de qualquer conceito de dignidade.

Não, este post não é para fazer uma discussão de uma São Paulo sem carro, coisa que aparece sempre neste espaço. Muito menos debater sobre direitos e políticas públicas. Ou arrotar regras. Se você se sente realizado comprando um automóvel maior do que as suas necessidades, vá em frente. Terapia é mais barato, mas vá lá. Particularmente, acabo adotando a mistura metrô, ônibus, táxi, car sharing no dia a dia (moro em um bairro que só tem pirambeira, então a bicicleta tem sido pouco usada).

Lembro muito bem das duas horas que eu levava para fazer o trajeto entre a escola onde estudava no ensino médio, no Pari, e a casa de meus pais no Campo Limpo. A falta de opções de qualidade e gratuitas levam a quem mora na periferia cruzar a cidade em busca de bons serviços públicos. Quantas vezes a viagem durou tanto e foi tão cansativa que dormia e acordava no ponto final não sei dizer. Isso quando ia sentado, é claro.

Quando inauguraram o corredor de ônibus Rebouças-Campo Limpo, nem usava mais esse trajeto, mas fiquei muito, muito feliz pelas pessoas que ainda o percorriam no dia-a-dia. E me lembro bem das estúpidas faixas de protesto colocadas por moradores dos Jardins contrárias ao corredor, temerosas da desvalorização imobiliária que ele traria. Para mim era quase impensável que alguns paulistanos fossem tão tacanhos assim. Depois, fui descobrindo que não, que o poço não tem fundo.

Meu pai, que ainda mora no Campo Limpo, pega metrô e ônibus diariamente para trabalhar. Fico pensando em tantos outros homens e mulheres com incontáveis fios de cabelos brancos que usam, por preferência ou necessidade, ônibus em longas distâncias. E de como temos sido lentos para garantir que possam ser tratados com dignidade. "Ah, mas os idosos andam de graça!" Isenção de tarifa não é um privilégio e, sim, um direito que conquistaram e que, aliás, deveria ser estendido ao restante da população – mas isso é outro debate. Agora, se forem checar as pesquisas de opinião junto aos moradores da cidade, o tempo de deslocamento e a qualidade do serviço estão no topo das reclamações. Mais até do que a tarifa.

De alguma forma, a classe média vai ter que começar a usar ônibus. E quando isso acontecer, ela, que é barulhenta e está abraçada com o poder econômico e político, aumentará o coro que chega da distante periferia quase como um sussurro. E, por isso, é ignorado. Daí, talvez, o transporte coletivo em São Paulo ganhe ares de decência e respeito. Se não sabem o que é decência nem respeito, dêem uma passada no final do dia na conexão entre as linhas verde e amarela do metrô.

Por fim, traduzindo, para quem não entendeu nada: Muito carro, ruim. Ônibus, metro, trem e bicicleta, amigos. A cada faixa de ônibus inaugurada que conseguir reduzir o tempo de deslocamento na cidade, uma família de pandas vai sorrir na China. E a cada carro que ficar na garagem, um grupo de anjinhos vai dançar ciranda no céu.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.