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Leonardo Sakamoto

Comerciais de TV do agronegócio são bons. Mas nem todos falam a verdade

Leonardo Sakamoto

19/09/2013 12h05

Campos dourados de trigo ceifados por jovens de cabelos esvoaçantes e unhas milimetricamente bem feitas. Veadinhos saltitantes, roubando uma ou outra rama de uma plantação para alimentar seus filhotes. O ruído da água correndo por córregos cristalinos em harmonia com o farfalhar das folhas respondendo aos recados do vento e a um ou outro onipresente sabiá-laranjeira. Trabalhadores sorridentes, comunidades felizes, povo em êxtase. No final, um artista com a credibilidade de quem faz sucesso na novela das 21h aparece na casa de uma família-margarina na hora do jantar e, mesa farta e posta, diz que devemos um "muito obrigado" à agricultura brasileira.

Nessa hora, você tem vontade de ficar de pé e aplaudir. E uma lágrima se desprende, quase sem querer… Comerciais que promovem o agronegócio são bons pacas, pois contam com recursos financeiros para serem realizados.

Longe de mim afirmar que a agricultura não é importante para o Brasil e para o mundo. É fundamental, talvez a mais fundamental das atividades humanas – depois dos humoristas. Contudo, não existe uma única agricultura, mas várias, dependendo de sua natureza e finalidade. Ela pode incluir e ser voltada à promoção da dignidade humana ou excluir e ser dela carrasco. E, se for o último caso, dificilmente aparecerão em comerciais de TV. É raro a agricultura familiar aparecer no horário nobre.

Em resposta a eles, foi lançado no YouTube um vídeo que, segundo seus produtores, "explica o círculo vicioso do lucro ruralista, que gera pouco emprego, não nos alimenta e ainda escraviza pessoas e animais". Alguns vão ficar irritados, outros acharão graça. Você pode não concordar, mas é necessário que sejam produzidos contrapontos aos discursos que mitificam atividades econômicas como se estivessem acima do bem e do mal.

Empresas e entidades ligadas ao agronegócio lançaram, tempos atrás, uma grande campanha de mídia para tentar reverter a imagem negativa do setor, contando com atores globais. O Movimento de Valorização do Agronegócio Brasileiro – Sou Agro envolveu também a produção de notícias e o desenvolvimento de pesquisas. A verdade é que, para mudar a imagem do grande agronegócio, que não vai lá muito bem com assassinatos de trabalhadores rurais, tratoradas sobre o Código Florestal, o trabalho escravo velho de guerra, noves fora as questões de concentração fundiária de sempre, qualquer campanha tem que ser longa.

O Brasil não conseguiu garantir padrões mínimos de qualidade de vida aos seus trabalhadores rurais, principalmente aqueles em atividades vinculadas ao agronegócio monocultor e exportador. Ocorrências de trabalho escravo, infantil e degradante, superexploração do trabalho, remuneração insuficiente para as necessidades básicas são registradas com freqüência. Prisões, ameaças de morte e assassinatos de lideranças rurais e membros de movimentos sociais que reagem a esse quadro também são constantes e ocorrem quase semanalmente. A estrutura fundiária extremamente concentrada também funciona como uma política de reserva de mão de obra, garantindo sempre disponibilidade e baixo custo da força de trabalho para as grandes propriedades rurais.

Parte do agronegócio brasileiro ainda não consegue operar com práticas sustentáveis, fazendo com que o meio ambiente sofra as conseqüências do desmatamento ilegal, da contaminação por agrotóxicos, do assoreamento e poluição de cursos d'água, entre outros. Da mesma forma, para a ampliação da área cultivável ou no intento de viabilizar grandes projetos há um histórico de expulsão de comunidades tradicionais, sejam elas de ribeirinhos, caiçaras, quilombolas ou indígenas, que ficou mais intensa com a colonização agressiva da região amazônica a partir da década de 70. Esse tipo de ação tem sido sistematicamente denunciado pelos movimentos sociais brasileiros às organizações internacionais – Belo Monte que o diga.

O país possui uma legislação trabalhista que, se fosse seguida corretamente, seria capaz de resolver boa parte dos problemas sociais que ocorrem nessas propriedades rurais. Ela incomoda e prova disso são as fortes pressões de empregadores por uma reforma que diminua os gastos com os direitos trabalhistas. 
O que existe efetivamente é um descompasso entre o que prevê a lei e a realidade no campo. Na busca por aumentar sua faixa de lucros e seu poder de concorrência no mercado nacional e internacional, parte dos agricultores descumpre o que está previsto na legislação e explora os trabalhadores, em intensidades e formas diferentes. Ficam com parte dessa expropriação e transferem a maior fatia para: a) a indústria, b) comerciantes de commodities de outros países e c) o sistema bancário brasileiro e internacional – que financia a produção.

 Os casos de exploração mais leves são mais freqüentes e dizem respeito ao pagamento de baixos salários e à manutenção de condições que colocam em risco a saúde do trabalhador. Do outro lado, as ocorrências mais graves estão na utilização de mão de obra escrava.

Como os casos "mais leves" de desrespeito ao trabalhador são mais frequentes, eles passam despercebidos na mídia, preteridos em detrimento à gravidade do trabalho escravo e infantil, que ocorrem em menor número. Também não é interesse de algumas empresas de comunicação em discutir aumentos de salários no campo, uma vez que é frequente a propriedade de TVs, jornais e rádios por grupos familiares do agronegócio. Já os assassinatos de trabalhadores rurais são vistos como "baixas de conflito", inseridos em um discurso de que a defesa da propriedade privada predispõe e justifica o uso da força. Segundo esse discurso, é comum o progresso ter as suas vítimas.

A força política dos proprietários rurais continua sendo um entrave para a mudança dessa estrutura. Há uma laissez-faire no campo.
 O detentor da terra na Amazônia, por exemplo, muitas vezes exerce o poder político local, seja através de influência econômica, seja através da força física. O limite entre as esferas pública e privada se rompe. Há no Congresso Nacional um influente grupo de parlamentares que defende os interesses das grandes empresas rurais, a chamada "bancada ruralista". Infelizmente, esses deputados e senadores atuam para engatar a marcha a ré, lutando para redefinir o que é considerado "trabalho escravo" no Brasil. Dizem que aceitam punir o crime, desde que seja abrandado o conceito dele.

Seria necessário, um horizonte de enfrentamento político e econômico às condições que garantem a exploração do trabalhador,  dos povos tradicionais e do meio ambiente – o que passa por uma mudança no modelo de desenvolvimento da agricultura, pelo menos dando a mesma oportunidade para grandes e pequenos. Horizonte que, apesar largas janelas do Palácio do Planalto, parece estar fora de alcance da visão de nossos mandatários.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.