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Leonardo Sakamoto

"Mendigo" não pode votar? Quem fala idiotice é que não deveria ser eleito

Leonardo Sakamoto

29/10/2013 13h18

Criei, anos atrás, o humorado Troféu Frango para premiar bizarrices em geral – quem é leitor deste blog já está acostumado com ele. Hoje, o Frango vai para o vereador José Paulo Carvalho e Oliveira, o Russo, vereador em Piraí, Rio de Janeiro:

Reportagens do jornal Extra e do Congresso em Foco tratam do vereador do PT do B, que defendeu a aprovação de um projeto que proíbe pessoas em situação de rua de votarem em eleições.

"Mendigo não tem de votar. Não faz nada na vida. Não tem de tomar atitude nenhuma. Aliás, acho até que deveria virar ração para peixe. A gente trabalhando feito maluco. Não dou nada pra mendigo. Se quiser, vai trabalhar."

Ou seja, para ele, ter uma vida diferente da maioria deveria ser crime passível de cassação de direitos políticos. Além de ser condenado a andar na prancha.

Daí o leitor pode me perguntar: por que você vai se preocupar com o que fala um vereador eleito com pouco mais de 300 votos em uma pequena cidade do interior? Com todo o respeito que a bela Piraí merece, é claro.

Porque o silêncio ou a indiferença diante de discursos de ódio como esse tem o mesmo efeito de um consentimento. E consentimentos crescem, florescem e geram frutos.

Vira e mexe alguém põe fogo em um cobertor de uma pessoa que está dormindo na rua. As que sobrevivem ficam marcadas pelo resto da vida. A culpa? Na maioria das vezes, recai sobre as próprias vítimas. "Afinal de contas, o que essa gente diferenciada estava fazendo fora do seu lugar? Esses jovens agiram com violência desnecessária, mas o mendigo também pediu, né?"

Na prática, as pessoas envolvidas nesses casos apenas colocam em prática o que devem ter ouvido a vida inteira: putas, bichas, índios e mendigos são a corja da sociedade e agem para corromper os nossos valores morais e tornar a vida dos "cidadãos pagadores de impostos" (que, portanto, têm direito a voto), um inferno. Seres descartáveis, que vivem na penumbra e nos ameaçam com sua existência, que não se encaixa nos padrões estabelecidos pelos "homens de bem".

Não buscamos o desenvolvimento e a implantação de políticas públicas de inclusão. Ao invés disso, vamos afiando a nossa falta de bom senso. Enxotamos, negamos comida, matamos a pauladas, negamos a cidadania – quase que impunemente, limpando a urbe para os que fizeram por merecer.

Como já disse aqui, líderes políticos ou religiosos dizem que não incitam a violência. Mas não são suas mãos que seguram a faca, o revólver ou a gasolina, mas é a sobreposição de seus argumentos e a escolha que faz das palavras ao longo do tempo que distorce a visão de mundo de seus seguidores e torna o ato de esfaquear, atirar e queimar. Ou, melhor dizendo, "necessários". Suas ações alimentam lentamente a intolerância, que depois será consumida pelos malucos que fazem o serviço sujo.

Segue o vídeo com a declaração editado pelo Extra:

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.