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Leonardo Sakamoto

Injustiças não acontecem no Brasil. Mas vamos fazer de conta...

Leonardo Sakamoto

18/11/2013 18h52

Suponhamos que um acampamento indígena fosse atacado no Mato Grosso do Sul ou na Bahia por milícias de fazendeiros e indígenas acabassem sendo assassinados. É claro que um país onde crianças se lambuzam de tinta guache e se enchem de pena de galinha e tangas de cartolina para ficarem "parecidas" com populações tradicionais a cada 19 de abril não teria coragem de fazer tal atrocidade. Mas suponhamos, como mero exercício de retórica.

Certamente representantes do governo federal repudiariam fortemente o ocorrido, demandariam a rápida investigação sobre as causas do atentado e a devolução do território aos indígenas – até porque a ditadura militar e o discurso dos grandes "desertos verdes", que justificaram genocídios pelo interior do país, não mais existem. Da mesma forma, ficou para trás, nos Anos de Chumbo, o desejo do crescimento a qualquer preço.

Portanto, se por uma dessas impossibilidades estatísticas, fosse descoberto que a incompetência do próprio Estado brasileiro em devolver terras ocupadas ilegalmente pela agropecuária fosse a principal causa, não tenho dúvidas de que o governo indenizaria os índios com o dobro do valor que foi emprestado pelos bancos públicos a essas fazendas.

Da mesma forma, se funcionários do Ministério do Trabalho e Emprego, durante uma fiscalização de rotina, fossem emboscados e chacinados em um Estado pujante, como Minas Gerais, os envolvidos seriam descobertos e julgados imediatamente.

E a Assembleia Legislativa nunca condecoraria os réus pelo crime com uma de suas mais altas comendas. Pelo contrário, repudiaria fortemente o ocorrido e os condenaria ao esquecimento. Uma injustiça dessas não aconteceria na terra de Tiradentes, nunca.

Outro ponto: como sabemos, ricos e pobres vão para a cadeia pelo mesmo tempo e nas mesmas condições quando cometem os mesmos crimes. Nunca uma pessoa que assaltou uma casa teria uma pena desproporcionalmente grande em comparação a um ex-diretor de um grande veículo de comunicação que matou a namorada, por exemplo. Afinal, no Brasil, toda a Justiça é cega e não vê conta bancária.

E também sábia e justa. Nunca a Justiça mandaria uma pessoa para a cadeia por ter furtado um xampu e um condicionador. Afinal os custos  para o sistema público seriam enormes e isso seria enviar a pessoa a uma escola de crime por algo que talvez se resolvesse com um emprego. E se, uma vez presa, essa pessoa perdesse um olho envolvida em uma briga, seria imediatamente solta porque o Estado reconheceria que não teria sido capaz de garantir a integridade de alguém sob seus cuidados.

A Justiça brasileira também não mandaria ninguém para a prisão por roubar dois pacotes de biscoito e um queijo minas a fim de saciar a fome. Que covil de lobos seria nossa sociedade se isso acontecesse?

Ou ainda, se uma pessoa roubasse coxinhas, pães de queijo e um creme de cabelo em um supermercado de uma grande rede e seguranças da empresa terceirizada espancassem essa pessoa até a morte, no mínimo, a rede seria responsabilizada pela contratação dos jagunços.

Até porque se um desembargador espancasse um homem inocente, ao confundi-lo com um assaltante, seria condenado e preso por aqui.

E quando uma mulher condenada a dois anos de prisão por roubar uma caixa de chicletes pedisse revisão da pena ao Supremo Tribunal Federal, a corte certamente lhe daria um habeas corpus. Se ela garante isso a empresários envolvidos em crimes muito piores que envolvem milhões sob a justificativa do direito à dignidade, por que não daria para alguém que roubou algo mais barato que a conta da lavagem da toga do magistrado?

Ainda bem que o Brasil não é assim. Durmam tranquilos.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.