Topo

Leonardo Sakamoto

Ser analfabeto digital não é motivo de vergonha. Mas nem de orgulho

Leonardo Sakamoto

02/01/2014 06h16

Em uma roda bem informal de conversa em um casamento, um grupos de pessoas discutia os impactos da mudança da legislação que equiparou, pelo menos em tese, os direitos das empregadas domésticas aos do restante dos trabalhadores no ano passado. Uma empresária reclamava, sem nenhum constrangimento, que a "última moça que trabalhou em casa" ganhava bem mais que merecia, pois era uma "analfabeta que não quer aprender nada".

Após um silêncio coletivo e beicinhos de repreensão (afinal, era um local majoritariamente progressista, mas ainda assim respeitador de algumas etiquetas hipócritas da elite), alguém mudou rapidamente o rumo da conversa, que foi cair – não sei o porquê – nas mudanças tecnológicas. Após cinco minutos de FB, TT e do moribundo Orkut, whatsapp, resposta automática de ausência, desterritorialidade do local de trabalho, compras online, tamagochi e pikachu, a referida senhora disse, com frases carregadas de orgulho, que não entendia nada daquilo e achava tudo uma bobagem.

Um amigo, de alma podre, virou e repetiu no meu ouvido "analfabeta que não quer aprender nada"…

Noves fora pessoas de comportamento bisonho que servem de mote para posts de blogs, se, por um lado, temos uma batalha pela erradicação do analfabetismo e, talvez mais difícil ainda, do analfabetismo funcional (pessoas que sabem enfileirar letras e cantar palavras, mas não conseguem interpretar ou redigir um texto), por outro temos o desafio de alfabetizar digitalmente um grande número de pessoas que, caso contrário, irão viver à margem da sociedade.

E não estou falando em saber programar o videocassete para gravar a novela ou repassar um e-mail com um tumblr de um filhote fofo de panda que espirra. A vida cotidiana está se desenvolvendo em plataformas digitais de forma muito mais rápida do que imaginaram os futurólogos de dez anos atrás. Do gerenciamento de contas bancárias, passando por compras online e pela ampliação das possibilidades de trabalho até os relacionamentos do dia-a-dia (tente não ter uma conta em rede social para ver como vai deixar de receber convites para festas…), a vida já se desenrola em camadas. Uma offline e outra por aqui.

Por isso, muitos jovens acham um absurdo sem sentido quando seus pais lhes dizem para "sair da internet" é ir jantar. Como sair de um lugar em que estou a todo o tempo? Onde minha vida existe independente de eu interagir ou não.

Entender o conjunto de símbolos e códigos que organizam esse lado da existência é fundamental para quem vive neste início de milênio. Quem ignorar isso provavelmente terá uma vida bastante limitada. E não poderá desfrutar de uma cidadania plena. Tal qual uma pessoa que não sabe ler placas de ônibus ou escrever uma carta exigindo indenização pelos danos causados pelo corte de luz.

Cantamos loas ao maravilhoso mundo de bits e bytes, mas muitos se esquecem de que parte da população não faz ideia de onde fica essa tal de internet ou  a que horas ela deve passar no ponto da lotação. E a velocidade de expansão dos que navegam na rede irá colidir, em algum momento, com a dificuldade de alfabetizar digitalmente um analfabeto funcional. Ou seja, um problema não resolvido encontra outro problema a resolver.

Isso sem contar as pessoas que, acostumadas com um mundo que não mais existe e tendo plena consciência disso, fecham-se para o aprendizado do novo. Para as que possuem os recursos financeiros para tanto, mas – arrogantemente – preferem o aconchego quentinho da ignorância, desejo meus sinceros pêsames.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.