Topo

Leonardo Sakamoto

Documentário brasileiro é herdeiro de Eduardo Coutinho

Leonardo Sakamoto

03/02/2014 21h13

Creio que poucas pessoas marcaram a forma como vemos o outro e tentamos dialogar com ele como Eduardo Coutinho. Se por um lado, o cineasta dificilmente será substituído, por outro, ele inspira o jornalismo brasileiro, mesmo que não nos demos conta disso. 

"É como se Coutinho fosse a matriz de uma série de outros documentários e reportagens que, depois, se debruçaram sobre o saber popular, que se interessam não só pelas histórias mas pelo jeito tão peculiar que cada um tem de contá-las, que procuraram instituir uma relação de camaradagem com o entrevistado para, daí, deixar brotar a espontaneidade, o humor, a emoção", diz Lúcia Ramos Monteiro, doutora em cinema pela Universidade Paris 3 e pela Universidade de São Paulo. "No documentário brasileiro, porém, o quase deslumbre, o amor que mantemos pelos modos de narrar populares, pelo linguajar informal e saboroso, a curiosidade que permite entrar na casa – e no quarto! – dos entrevistados deve muito ao caminho que ele abriu." 

Pedi para Lúcia um breve texto sobre o significa Coutinho, que segue abaixo.

Documentário brasileiro é herdeiro de Eduardo Coutinho

Santo Forte (1999), Babilônia 2000 (1999), Edifício Master (2002), Peões (2004), O Fim e o Princípio (2006) e tudo o que veio depois vi em salas de cinema, conforme estreavam ou passavam em festivais. Mas foi na faculdade, alguns anos antes, que conheci o cinema de Eduardo Coutinho. Se, naqueles anos 1990, eu ainda não tinha clareza do método revolucionário que cada filme dele ia lapidando, ao longo da década seguinte isso se tornou patente.

No mestrado, estudei parte da obra do cineasta, e sobretudo Cabra Marcado para Morrer. Estava interessada em momentos em que o personagem de um documentário se vê na tela. E é incrível a maneira como isso se dá quando Elizabeth Teixeira, a viúva do líder camponês João Pedro, se vê, dezoito anos depois das filmagens originais de Cabra…. Quando o cineasta a reencontra, ela havia mudado de nome e nem os filhos sabiam de seu paradeiro. Também durante o mestrado, pude ter a experiência de assistir a seus filmes fora do Brasil, de discuti-los em seminários na universidade (nas aulas de François Niney na Paris 3) e de confrontá-los com o trabalho de outros documentaristas, alguns deles oriundos do mesmo Idhec (Institut des hautes études cinématographiques, precursor da atual Fémis) em que Coutinho estudou. Estranhamente, só depois disso me dei conta de como a influência de Coutinho está presente no documentário brasileiro (e, em menor medida, também em alguns programas de televisão).

É como se Coutinho fosse a matriz de uma série de outros documentários e reportagens que, depois, se debruçaram sobre o saber popular, que se interessam não só pelas histórias mas pelo jeito tão peculiar que cada um tem de contá-las, que procuraram instituir uma relação de camaradagem com o entrevistado para, daí, deixar brotar a espontaneidade, o humor, a emoção.

Escritas às pressas, minhas frases dão conta de apenas uma pequena parte do trabalho fundamental que Coutinho veio desenhando ao longo das últimas décadas. Posso ter dado a impressão de que seu método se manteve constante o tempo todo. Não é verdade: poucos cineastas souberam, como ele, impor-se desafios novos constantemente, fazendo não só sua filmografia avançar, mas também a reflexão e a crítica.

Nesse sentido, Edifício Master marca o ápice do aprimoramento do método – ele em geral não participa das pré-entrevistas, mas vê todo o material gravado pela equipe antes de fazer sua própria entrevista, podendo assim unir o frescor da descoberta com uma pesquisa bem documentada. Coutinho nunca se acomodou, nunca deixou estratégia nenhuma se cristalizar. A guinada que deu com Jogo de Cena (2007) e Moscou (2009) é talvez a maior prova disso. Os dois filmes escancaram o flerte que todo documentário mantém com a ficção, colocando em risco as próprias categorias de "documentário" e de "ficção" e embarcando na forma ensaística e na teatralidade (sobre esse assunto, recomendo a leitura do excelente ensaio de Ismail Xavier, publicado na revista portuguesa Aniki e disponível aqui).

É preciso ser um pouco ator para fazer entrevistas, disse Coutinho, numa das vezes em que se viu na condição de entrevistado. Nos parágrafos anteriores, posso ainda ter dado a falsa impressão de que Coutinho inventou seu método do zero. Não é bem assim: ele foi em grande medida um herdeiro do cinema-verdade e do cinema-direto, tendo dialogado por exemplo com o francês Jean Rouch (1917-2004).

No documentário brasileiro, porém, o quase deslumbre, o amor que mantemos pelos modos de narrar populares, pelo linguajar informal e saboroso, a curiosidade que permite entrar na casa – e no quarto! – dos entrevistados deve muito ao caminho que ele abriu. Em 2006, enquanto digitalizava as fitas DV que havia gravado para meu primeiro documentário, me vi batendo papo com os entrevistados em cortiços, apartamentos de classe média e estabelecimentos comerciais do bairro dos Campos Elíseos, em São Paulo. Lá estávamos nós, na cozinha da Dona Leda, filmando o berço do filho caçula da Joelma e ainda o quarto da Dona Maria na Lavanderia Ibérica, enfim, tornando públicos momentos de intimidade.

Sim, também tenho uma dívida com Coutinho. Acredito que, embora as gerações seguintes tenham inventado e/ou precisem inventar formas próprias de fazer cinema, o método que ele criou está vivo em cada um de nós.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.